DDD - Diário de Derrotas [14]

Sei que no último DDD prometi uma continuação, mas não deu não. A vida não deixou. Perdão.

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Eu demoro no banho porque esqueço que não dá pra limpar a sujeira que guardo dentro de mim. De certa forma sou vaidoso e desleixado: não saio de casa sem tomar banho, não saio de casa sem escovar os dentes, não saio de casa sem encher as meias e os tênis de talco e menos ainda sem besuntar a sovaqueira com desodorante que pago o olho da cara. Também tem o creme de cabelo que não me deixa parecido com o Valderrama e, de vez em nunca, perfume. Sim, é uma veadagem, mas no que tange à vestimenta eu não me importo muito: arranco a coisa do varal e vou colocando e saio todo vincado, como se tivesse dormido dentro do microondas.

Mas hoje a camisa social que minha mãe passou ontem e que deixei na mochila (porque pretendia dormir na casa da namorada, mas acabou não rolando) estava transcendendo tudo o que poderia ser considerado considerável. Apesar de toda a frescura metrossexual, não tenho mania de me olhar no espelho antes de sair de casa, e no reflexo de um dos carros que estava parado na rua, fiquei com vergonha de mim mesmo.

Estava em cima da hora.

Estava calor demais pra colocar a blusa.

Voltei e peguei uma do cabide.

Estava calor demais pra ficar parado abotoando a camisa nova, sem amassos.

Subi a rua caminhando a passos largos enquanto abotoava a porcaria, fazendo de tudo pra não olhar minha barriga - algo que eu não tinha há 1 ano.

Agora, pego uma lotação pro Metrô Itaquera e, para tanto, preciso atravessar uma avenida que antes não precisava. O farol abriu para os carros assim que cheguei na ponta da faixa de pedestre, enquanto do outro lado a lotação parava. Quando o farol fechou e eu me coloquei a andar, a lotação já virava a rua ao lado e sumia de vista.

Ela estava vazia.

Peguei a outra. Cheia.

Na hora do desembarque, na hora do meu desembarque, havia uma enorme lacuna para uma mocinha com o bebê no colo descer depois de mim, mas tranquei a passagem dos demais, cedendo minha vez a ela.

Perdi o trem por causa disso, suponho, já que ao fim da escada rolante, pude vê-lo fechando as portas e indo embora.

O outro trem veio cheio demais e não consegui entrar.

No trem subseqüente, consegui, e consegui ser prensado bem atrás de uma moreninha de bunda arrebitada e tomara-que-caia que estava na outra porta eu já estava secando com olhos brilhantes. Que sufoco! Como eu sou precavido e deixo a mochila à frente do corpo, não há problema de bolinação.

O meu problema era o negão de dois metros roçando a fivela no meio das minhas costas e respirando no meu cangote.

Na Luz fazia calor e havia requintes de tortura na aglomeração pra descer as escadas rolantes.

Uma loira de calça branca surgiu na minha frente, e parou de repente, e eu fiquei olhando o teto da Estação, pensando em azar e sorte, sentindo um calor miserável dez pras oito da manhã.

Uma vez na Linha Amarela, prestes a chegar na última das escadas rolantes antes da plataforma de embarque, o negócio apitou as duas vezes que são de praxe e as portas se fecharam.

Chupei o dedo por cinco minutos esperando o próximo.

Aí, desci na Estação Paulista, subi os dois lances de escada fixa, a escada rolante, as duas esteiras, e quando cheguei na plataforma perdi outro Metrô.

Aí fui andando por entre as pessoas, observando e ignorando o relógio caguetando meu atraso de cinco minutos, e parei na porta que desemboca na escada rolante, e tive a sorte de encontrar uns semiconhecidos pra animar ainda mais a minha vida.

Aí cheguei quinze minutos atrasado, e a sorte é que cheguei com meu chefe, e o azar é que ELE entra meio-dia.

Com um calor desgraçado de 34ºc no lombo, depois de ter comido uma pratada com bife a rolê bem gorduroso - depois de duas semanas almoçando num restaurante vegetariano -, com todo o sono do universo, fui incumbido de levar umas coisas num cliente na Vila Mariana. De Metrô demora quinze ou vinte minutos pra chegar lá, mas eu odeio Metrô, ainda mais no calor. E de ônibus demora praticamente a mesma coisa, e ainda consigo dormir. Resolvi ir de ônibus.

Fiquei quinze minutos no ponto esperando o dito cujo.

Depois de quinze minutos dentro dele, percebi que havia algo de errado: ele.

O trajeto é basicamente Avenida Paulista/Rua Vergueiro/Domingo de Morais, mas esse miserável se enfiou nas vilinhas do Paraíso e depois de um bom tempo - onde praguejei ininterruptamente - foi sair no Shopping Santa Cruz.

Desci, quis morrer, e completei o resto do caminho à pé.

E pra voltar?

De Metrô, na hora do rush? Ter que andar até a estação?

Ter que agüentar subaqueira abafada?

Fui pro ponto e fiquei esperando o ônibus por dez minutos.

Desisti dele e fui andando até a estação de Metrô e, exatamente - EXATAMENTE, eu disse - na metade do caminho entre o ponto onde eu estava e meu pretenso destino, eis que surge o maldito ônibus.

Deveria eu correr?

Num Saara asfaltado?

As pessoas entraram e a porta foi fechada, e ele continuou parado por causa do farol. Dei uma corridinha. Bati na porta. O motorista mandou o mundo tomar no cu e apertou o botão que abre a porta com um coice de mão. Eu olhei nos olhos dele e agradeci.

Sentei num banco imediatamente à frente de uma cobradora loira, meio coroa, razoável, apesar do uniforme escondendo sua feminilidade e etc. Uns dois pontos depois entrou uma loira baixinha, troncuda, de vestido roxo, leve, meio curto, e sentou do meu lado e cruzou as pernas, com as mãos esmaltadas em laranja repousadas sobre o joelho.

Acabei adormecendo e passando dois pontos, tendo que descer perto do MASP e voltar andando até a Brigadeiro, com aquele mesmo calor do caralho não perdoando ninguém, me igualando às dondocas de nariz empinado e bunda caída que passavam arfantes por mim, com seus poodles imbecis e ranhentos.

Aí que deu a hora de ir embora - depois de umas duas horas de sortilégios modorrentos - e eu peguei meu ônibus, escrevi o "Injeção de Ar" e dormi, acordando dali uma hora com um retardado mental que entra vendendo balas - ele anuncia a venda das balas por cinco minutos e vai até o ponto final do ônibus (seja ele qual for) lendo a bíblia aos gritos.

Quando parei à porta, pronto pra descer, me acenaram da parte da frente do ônibus e era uma amiga queridíssima do outro emprego, aí fui obrigado a deixar de descer - e deixar de ir pra academia, e deixar de tomar banho, e deixar de saciar minhas necessidades fisiológicas - e ir saber das novidades que são sempre as mesmas.

Desci dez pontos depois, ganhando uma caminhada de meia hora pra chegar em casa. Já que não iria pra academia, decidi comer um X-bacon nos trailers de uma praça que ficam em frente a uma faculdade, mas não rolou, e acabei parando num muquifo que vende acarajé e comi uma tapioca. O lugar era pequeno e quente. E quente. Comi minha tapioca e saí, mas saí fedendo acarajé na camisa, nos braços, na calça, no cabelo, etc.

Aí, em casa, naquela pretensão de ir dormir cedo pra acordar cedo e ir pra academia, não rola de dormir, porque a prima agregada foi parir outro filho e seus filhos e suas irmãs pequenas estão sob a tutela da minha mãe e essas criaturazinhas adoráveis estão falando alto, gritando, mutuamente se pirraçando e chorando em seguida.

Aí eu coloco uma ferradura com a parte aberta pra cima na boca e durmo sorrindo, porque minha vida é maravilhosa.

13/12/2011 - 23h05m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 14/12/2011
Reeditado em 27/10/2023
Código do texto: T3387681
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