SAUDADE I

“Saudade é a vontade de ver de novo”

– Ivanildo Villa Nova, poeta repentista, pernambucano.

Alguns dias atrás eu tive a oportunidade de trocar umas palavras com Manoel Fernandes, confrade recantista paraense que teve o dom de despertar as boas lembranças que tenho dos dias em que, primeiro em férias e depois trabalhando, tive a oportunidade de estar em Belém a bela, acolhedora e inesquecível capital do Estado do Pará.

A sensação que temos quando o avião faz a aproximação para o pouso na pista é de que mergulharemos nas águas da baia de Guarajá. Aquele mundão d’água é impressionante, principalmente para olhos nordestinos acostumados com rios temporários e açudes que mais parecem gotas d’água se comparados com a abundância da Região Norte.

O Pará é a porta da Amazônia brasileira e demonstra ao visitante toda pujança daquela região sabidamente desejada pelos povos de várias nações.

Como não podia deixar de ser, minha visita começou pelo Mercado Ver-o-Peso.

Era cedo, ainda escuro. O telefone da mesinha de cabeceira gritava como um alucinado para me avisar que o colega de trabalho estava na recepção me aguardando. Apesar do relógio dizer que passava muito das cinco horas, ainda era noite em Belém. Ora, no Recife, onde meu organismo está adaptado, essa hora já é dia claro.

A explicação, como tudo na natureza, é muito simples. Recife e Belém ficam no mesmo fuso horário, sendo uma no princípio e a outra no final e, como ambas estão muito próximas do Equador, essa diferença na luminosidade do dia fica por conta dos muitos quilômetros (perto de 1700) que a luz tem que percorrer. Assim, quando no Recife já está escuro em Belém ainda é dia claro.

Rapidamente me aprontei e fomos tomar a cuia de açaí com açúcar e farinha de tapioca. O sabor forte, adstringente, o cheiro marcante além do visual formam o conjunto daquela surpresa agradável, viciante a partir da primeira colherada. Depois pupunha com café e todo o mercado para explorar.

Barcos, barcos, barcos incontáveis barcos trazem dos confins da Amazônia inumeráveis espécies de peixes para serem comercializados. Homens carregam nas cabeças os cestos contendo os peixes e andam por sobre pranchas de madeira, balançantes como pontes de corda, entre os barcos e o cais. Os peixes têm os mais variados tamanhos, formas e cores. No entorno do mercado as barracas onde se vende de tudo além dos temperos próprios da região.

Os rostos alegres, os ditos brejeiros com os transeuntes e com os turistas, demonstram a felicidade daquele povo simples, religioso e hospitaleiro.

Depois o Museu Emílio Goeldi que mantém em exposição permanente toda variedade de vida amazônica. Em seus jardins, entre árvores imensas os tanques com os peixes e quelônios de vários tamanhos e formas. Pirarucu, tambaqui, tucunaré, piranha, muçuã, tracajá, içá etc. e pelo chão seco jabuti, roedores e lagartos vivendo livremente.

O Bosque é outro local agradável onde o burburinho da cidade esbarra em seus muros fazendo com que seja uma ilha de tranquilidade e silêncio no meio da agitação da cidade grande.

O Museu Barata, cujo edifício tem a forma do chapéu usado pelo governador paraense a quem o museu está dedicado, é outro local de visitação obrigatória, assim como o Forte do Castelo, local onde se presume tenha começado a cidade.

No almoço as delícias como pato no tucupi, maniçoba etc. que se complementam com os sorvetes de açaí, cupuaçu, biribá, bacuri, taperebá...

O teatro Carlos Gomes é um mergulho no passado e ostenta toda grandiosidade e riqueza da época em que a influência francesa se impunha em todo o mundo.

Na boquinha da noite tomamos tacacá na cuia, com camarão e jambu, a erva que anestesia a boca.

Na casa de espetáculos – Sabor da Terra – assistimos ao espetáculo que reproduz a ocupação da região desde as Amazonas, as mulheres guerreiras, até os dias atuais. O espetáculo é deslumbrante com as danças típicas, como o carimbó, e os rituais das etnias extintas a partir da invasão pelos europeus, que de alguma forma foram resgatados.

As amazonas faziam anualmente a festa da fecundidade. Única ocasião em que os homens eram admitidos na tribo. Os que reproduziam fêmeas recebiam o amuleto Muiraquitã – um sapinho mumificado – para que no próximo festival tivesse prioridade para o acasalamento.

Eu tenho guardado uma réplica em cerâmica do muiraquitã que ganhei durante o evento.

Foi assim: o mestre de cerimônias perguntou quem da plateia mais entendia de mulher. Imediatamente levantei o braço e fui para o palco explicar que: quando criança morava com minha mãe e irmã; adolescente era o companheiro de compras da minha tia e madrinha nas feiras livres e ainda adolescente me transformei no guia de minha avó cega pelo glaucoma; nas festas sempre fui o maior dançarino; casado pai de duas filhas; como estava separado da esposa, estava também noivo de uma moça que tinha uma filha que me chamava pai. Não deu outra, ganhei o amuleto que até hoje não me deu motivo para reclamação.

Além dos vários passeios de bardo, fizemos em Icoaraci, a visita às olarias onde se fazem as peças da cerâmica Marajoara.

Nesses dias enquanto eu estava em férias, os colegas de trabalho estavam em plena atividade, mas nessa semana inesquecível, não fiquei desacompanhado porque logo no primeiro dia fiz amizade com Lucy, uma paraense dos cabelos curtinhos e encaracolados que falava o português com aquele sotaque melodioso que caracteriza a região e que não mediu esforços para que eu me sentisse em casa, enquanto desfrutava das delícias de ser um paraense honorário.

GLOSSÁRIO

AÇAÍ – Euterpe oleracea

BIRIBÁ – Rollinia mucosa

CAMARÃO – Macrobrachium amazonicum

CUPUAÇU – Theobroma grandiflorum

IAÇÁ – Podocnemis sextuberculata

JABUTI – Geochelone carbonária

JAMBU – Spilanthes oleracea

MANDIOCA – Manihot esculenta

MUÇUÃ – Kinosternun scorpioides

PIRANHA – Senasalmus Spp (usa-se spp quando não se pode determinar a espécie)

PIRARUCU – Anapaima gigas

PUPUNHA – Bactris gasipaes

TACACÁ – Mingau de fécula de mandioca

TAPEREBÁ – Spondias mombin (O mesmo que cajá)

TRACAJÁ – Podocnemis unifilis

TUCUNARÉ – Cichlas monoculus

TUCUPI – Molho preparado a partir do sumo da mandioca