O PRAZER DE FAZER AS PEQUENAS COISAS

Costumo, quase (o "quase" é devido a alguns finais de semana nos quais eu estico um pouco mais para descontar as horas de sono acumuladas durante a semana e/ou durante um certo período que, em alguns casos, pode chegar até a seis meses) todos os dias, acordar por volta das quinze para as seis da manhã.

Como num ritual, os dois copos com água natural. Depois, metodicamente, tirar a poeira do carro e, em seguida, passar um pano molhado para deixá-lo brilhando de novo. Isso, tirando as exceções, são todos os dias do ano.

Aí você me pergunta: é uma obrigação?

E eu respondo: não, não é uma obrigação. É, na verdade, um prazer pessoal fazer o que eu faço em todas as minhas manhãs.

Mas, você poderia me perguntar ainda: e daí, o que eu tenho com isso?

Nada, é verdade. Mas, como para tudo há um propósito, começar esta crônica desta forma também, claro e evidente, teve uma razão de ser.

Explico: da mesma forma que eu acordo, às quinze para as seis, e faço o ritual de limpar o carro, todas as manhãs; passa, neste mesmo horário, uma senhora que vai comprar pães e pastéis numa vendinha mais adiante.

Vez por outra, ela para e dá bom dia. Outras vezes, não.

Outro dia, ela passou, deu bom dia na ida e, na volta, parou. Eu estava absorto com o que estava fazendo e não percebi a sua presença na calçada da minha residência. Ela, calada estava, calada ficou. Apenas me olhava. Depois de um certo tempo, ela resolveu denunciar a sua presença através de um pigarro.

Educadamente, eu a cumprimentei... de novo. Ela, com as mãos nas cadeiras, um olhar entre o brilho da curiosidade e o cansaço dos anos na retina, perguntou-me se não era chato ter que acordar todos os dias para fazer a mesma coisa.

Creditei o “todos os dias” ao fato de ela me ver, todos os dias, tirando, primeiro, a poeira acumulada e, depois, passando a flanela molhada e lavando a pintura do automóvel.

Contudo, não respondi à sua pergunta da forma como ela gostaria que eu respondesse. Apenas sorri e disse-lhe que até achava bom, pois como não tinha muito tempo para praticar um exercício físico, eu aproveitava aquele pequeno espaço de tempo para poder exercitar o meu corpo. Não menti. De fato, a tarefa que faço todos os dias, além de fazê-la com um grande prazer, eu aproveito para poder, também, “desenferrujar” o esqueleto.

Ela, então, olhou-me e disse: admiro a sua força de vontade. Agradeci a gentileza das palavras, mas, sinceramente (conservei para mim as reflexões), não vejo como uma força de vontade acordar, todos os dias, e fazer a mesma coisa que faço, em todos esses anos.

Quando ela se despediu, eu fiquei pensando sobre fazer as coisas, primeiro, por obrigação e, depois, por prazer.

Primeiramente, acordar – todos os dias – já é um grande prazer. E mais: acordar com saúde já multiplica o prazer de acordar. Assim, acordar todas as manhãs e retribuir, com pequenos gestos de agradecimento, o que recebemos, nunca poderá ser uma obrigação.

Talvez você agora esteja pensando: pirou de vez! Agradecer a um objeto!

Sim, eu agradeço. É ele que me leva e me traz; percorre, para mim, longas distâncias; socorre-me quando eu preciso estar em determinado lugar e os minutos que me faltam seriam insuficientes para, se eu fosse a pé, chegar a tempo; enfim, cuidar para que ele esteja tão bem quanto eu – todas as manhãs – é, na verdade, uma obrigação minha (se não fosse o prazer que eu tenho) em retribuir os seus esforços.

Segundo, fazer as coisas por obrigação. Talvez – não sei – comprar o alimento matinal de todos os dias seja, para ela, uma obrigação. Porém, acredito eu, na hora em que ela está saboreando o pãozinho, ainda quentinho, com o pastel de queijo, com certeza, o prazer que ela sente – naquele momento – faz com que ela esqueça que, se ela quiser ter, a cada dia, o desjejum na sua mesa, todos os dias, terá que ir comprá-lo. Então, se existe a obrigação (para ela) de ir comprar, para depois ter o prazer de comer, se invertêssemos esta ordem, quem sabe, o andar seria mais animado, o olhar menos cansado e as palavras de cumprimento aos passantes soariam como uma verdadeira benção de um bom-dia.

Terceiro, ter prazer em fazer as coisas é um exercício diário. Quem não exercita esse prazer poderá perder, com o passar do tempo, o sentido de realizar pequenas coisas – com prazer – que, se olharmos bem, são elas que dão sentido à nossa vida cotidiana.

 

Obs. Imagem do google


 
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 11/12/2011
Reeditado em 19/04/2019
Código do texto: T3383278
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.