Ao filho de pais caretas
Você não lembra, é claro. Nem teria como lembrar. Era muito pequeno. Eles o pegavam no colo. Abraçavam, apertavam, acontecia de mordê-lo. Por vezes, você acabava chorando, sufocado pelo excesso de um carinho que eles não sabiam dosar. Se conseguisse falar, você diria: “Parem com isso. Estão me machucando. Sou muito fraquinho”. Mas reclamar para quem? Os avós faziam pior. Parece que disputavam para ver quem judiava mais.
Você nunca pensou nisso, mas sua vinda foi muito esperada. Desde quando descobriram que estava a caminho, você tornou-se o centro da vida deles. Não havia assunto mais importante, preocupação maior. Tudo era para você, que ia chegar.
Você provocou grande transformação em sua mãe. Ela se tornou mais sensível, emotiva, meio dengosa. Chorava à-toa, parecia insegura, se irritava por nada. Voltou a ser, outra vez, uma adolescente. Ou quase. Seu pai sentiu-se meio perdido. De repente, passou a achar estranha a mulher com quem vivia.
Depois que você nasceu, complicou de vez. Vieram trapalhadas com sua higiene, alimentação, saúde... Em várias situações eles se perdiam. Vinha-lhes à mente perguntar: E agora, fazer o quê? Criança devia vir com manual de instruções.
Hoje você é forte, bonitão e se considera dono de um mundo que se abre aos seus pés. Capaz de tomar decisões, de resolver o que é melhor, o que vale a pena na vida. “Sei o que estou fazendo” diz, com uma segurança que talvez nem eles demonstrem. Você os olha com piedoso pouco-caso, como se para outra coisa não servissem além de pegar no seu pé. De vez em quando, não tem vontade de dizer, se é que já não disse: “Pô, velho(a), dá um tempo?”
Com vinte anos, você está quilômetros à frente deles, não? Eles nada sacam do que acontece hoje. Já tiveram a vez deles; agora é a sua. Por que tanta bronca com seu jeito, se assim fazem todos os seus amigos? Você não precisa de conselhos. Não acreditam que ninguém faz a sua cabeça? Que já é grande para decidir entre o certo e o errado? Que sabe escolher o que o fará feliz? Que sabe afastar-se do que vai prejudicá-lo?
Pois é. As desgraças do mundo, que você tanto condena, foram causadas por gente que julgava não precisar de conselhos. Achava que sabia tudo; os outros, sim, é que não passavam de um bando de tapados. “Foram adultos que construíram o mundo podre que está aí”, dirá você. Está coberto de razão. Adultos que, com a idade que você tem hoje, se comportavam como donos da verdade. Não aceitavam palpite nem admitiam mudar coisa alguma em sua vida.
Se amanhã você entrar numa roubada, daquelas que parecem não oferecer saída, sabe quem ficará do seu lado? Não vão ser os amigos que em tudo lhe dão razão, eu garanto. Nem a gata que só lhe diz aquilo que você gosta de ouvir.
Amar não é coisa de momento. Amor de verdade é para a vida inteira. Enquanto você viver, será amado pelos seus pais. Ainda que lhe custe acreditar. Amar não é concordar sempre e a propósito de tudo. É, muitas vezes, ter coragem de dizer não. Mesmo com lágrimas. Guarde esta verdade: lágrima de pai e mãe não sai dos olhos, sai do coração. Porque é com o coração que se ama. Você nem existia ainda e eles já o amavam.