ROMANCE DE RIO E MARGENS

Brasil Sul, divisa entre o Rio Grande e Santa Catarina. Um rio serpenteia serras e baixios em direção ao oceano. É o velho Mampituba, o “rio dos bagres e do peixe-boto”, na trigueira memória dos aldeões ribeirinhos, lembrando o dorso escuro dos cetáceos, mamíferos adaptados à vida aquática trazendo a possível fartura de bagres, corvinas e tainhas aos pescadores embarcados ou às margens, tarrafa na mão e nos dentes, sempre à espera dos cardumes. Na foz, o reduto de molhes de pedra, ao largo – ventando sempre – artéria viva de barcos e sol. Rico celeiro da pesca artesanal e recolha ocasional de resultado dos barcos pesqueiros ao longo do parcel oceânico.

À noite, convivem os olhos vesgos de maresia sobre torres de sinalização, faróis dos automóveis e a luz dos postes ao longo das margens do rio e os redutos povoeiros. O olhar forasteiro agradece a beleza restada nas retinas passadiças no Passo de Torres. A gente do lugar, acostumada à beleza, nem se apercebe dos mistérios topográficos. Nos logradouros do Passo, a vida corre plácida, sem tumultos e a Senhora dos Navegantes ora por todos. No ar, perpassam bênçãos de maresias e furtivos ventos para mitigar cansaços daqueles que fogem da cidade e do campo em direção às pousadas de inverno e verão. À noite, toma-se um mate ao canto dos grilos, das cigarras cantadeiras, nos alpendres, à luz dos pirilampos.

Do outro lado está o fervilhar de Torres, no Rio Grande do Sul, seus altos edifícios espraiados em toda a orla marítima e também à beira-rio, e a reluzente suserania burguesa mais que centenária. Do lado de cá, no bairro proletário Basarga (assim o povo dá nome ao seu lugar de morada) esconde-se uma singela aldeia de pescadores à margem do mar (uma nesga de terra ilhada entre criatórios de ostras e camarões) o rio vai se finando, e, ao final de seu curso, debulha-se em verdes algas e musgos e escoa-se, minúsculo e assoreado, na Barra Falsa, mar adentro, no turbulento Atlântico Sul.

À socapa, o mitológico Netuno, com seu tridente ancestral, amansa os ventos e Iemanjá segura malvadezas nos terrunhos ancoradouros. Talvez por isso tudo, o alter ego da criação poética perviva em Pasargada, porque aqui o forasteiro é “amigo do Rei”, como queria Manuel Bandeira, o pernambucano poeta.

Talvez por todas essas causas a Poesia procrie nos molhes de pedra, rio e mar e nos pátios das casas ao rés-do-chão se arrinconem dálias e orquídeas, sabiás, biguás e gaivotas, também de olhos vivos no pescado, porque no Passo de Torres a riqueza vem do reino das águas.

E a ecologia irriga-se – torre de observação para o futuro – haurindo e equilibrando a vida em terra, ares e céus, através do corpo líquido em movimento, nos bichos e homens.

MONCKS, Joaquim. A BABA DAS VIVÊNCIAS, obra inédita, 2011.

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