Vitrines
Atravessou a rua com relativa ligeireza, em direção à vitrine da loja de roupas, os olhos fixos no manequim que exibia um vistoso conjunto de saia e blusa, moda já para o verão que se prenuncia quente este ano, peças leves, coloridas, ventiladas. Roupa jovem, para gente jovem. Jovem como soube se manter o espírito daquela digna senhora já avançada em anos a quem devoto respeito e afeição imensos. O interesse de uma pessoa já tão vivida pela vitrine, me fez pensar em como a vaidade não poupa ninguém.
Fiquei refletindo sobre o fascínio que as vitrines exercem sobre as pessoas e como o comércio sabe explorar este ponto fraco. É lindo o colorido da cidade, à noite. As luzes de néon e os letreiros coloridos, apelos à nossa vaidade, artificiais e iluminados, em profusão tal que é difícil alguém escapar. Mesmo aquelas almas mais direcionadas e objetivas, às vezes se deixam levar pelo clamor visual e o alarido das propagandas hoje veiculadas de todas as formas possíveis. E haja capacidade de resistência. Há um exército poderosíssimo de bons profissionais, profundos conhecedores da vaidade humana, a atiçar esse nosso pecado capital.
Mas algumas pessoas, no meio de todo esse mundo materialista, entregue às futilidades e por isso tão propício aos apelos publicitários, me parecem vitrines vivas a exibirem produtos mais duradouros, pouco atraentes, porém, a quem não consegue enxergar com os olhos da alma.
Recentemente, faleceu de morte natural, aos setenta e cinco anos, uma pessoa a quem eu conhecia desde meus tempos de criança, surdo-mudo, com uma visível carência de coordenação motora. Caminhava com muita dificuldade e, de tão néscio não aprendera sequer acenar, nem mesmo coisas básicas como pedir comida ou água. Sorria. Sorria muito. O tempo todo. Por brincadeira o chamávamos de Domingos. A alegria contida em suas expressões faciais lembravam mesmo aquelas ensolaradas manhãs de domingo. Domingos era para mim o maior exemplo da misericórdia de Deus para com o ser humano, e também uma prova viva de que no coração dos homens ainda resta muito amor, o suficiente para que toda a humanidade seja feliz, caso assim o decida. Sem a menor capacidade laborativa, sem nunca ter podido desempenhar a menor tarefa, nem mesmo coisas simples como banhar-se, ou preparar as próprias refeições, nunca lhe faltou o essencial. Sempre houve quem lhe estendesse a mão, mesmo não havendo jamais contribuído materialmente para o bem da humanidade, ela não o desamparou. Caminhou trôpego sobre a terra durante setenta e cinco anos. Isso significa que por vinte e sete mil e trezentas e noventa e três vezes o sol nasceu sobre ele e ele o saudou com alegria todas aquelas vezes. Viveu ele inutilmente? Não. Sua tarefa neste Vale de Lágrimas era muito nobre: distribuir sorrisos. Muitos sorrisos. A mim, particularmente, ensinou a celebrar as coisa simples, pequeninas dádivas de Deus, que caem como gotas em nosso dia a dia, muitas se perdem no solo poento da nossa descrença ou esvaem-se no fogo de nossas paixões mundanas.
Talvez o meu amigo Domingos não fosse tão néscio assim afinal. Ele sabia de uma coisa que muitos de nós, que nos julgamos espertos, jamais conseguimos aprender: confiar na Providência de Deus e na boa vontade dos irmãos. Acho que sua alegria era fruto desse conhecimento.
Uma coisa é certa: o homem nasce completamente dependente de seu semelhante e quando tem a graça da longevidade, costuma terminar seus dias na mesma dependência. Essa verdade deveria bastar-nos para o reconhecimento de que somos necessários uns aos outros e não menos necessitados.