CLARICE LISPECTOR NO CARNAVAL DO RECIFE.
![576881.jpg](http://www.recantodasletras.com.br/usuarios/59865/fotos/mini/576881.jpg)
Por Carlos Sena
Manhã de carnaval. Era uma segunda-feira e pequenos movimentos carnavalescos começavam a despertar no entorno da Praça Maciel Pinheiro. Ouvi um apito imaginário nos arredores e pensei que fosse um frevo de bloco que estivesse ensaiando seu lirismo. Não! Era ela que se aproximava da praça como que conduzida pela atmosfera lúdica, bucólica, alegre daquele segundo dia de carnaval em Recife. Sentou-se num banco da praça e com toda graça tirou uma dália do jardim, depois mais uma e assim outras e colocou no seu cabelo. Tinha um semblante meio triste, mas se percebia CLARAMENTE que sua intimidade com aquele momento lhe deixava esfuziante e feliz. De repente, um clarim entoa a saída de um bloco nas imediações da Rua Nova. Anunciando que “Vassourinhas” (das mais importantes agremiações carnavalescas do Recife) estavam por ali, preparando-se para invadir as ruas estreitas do bairro de Santo Antônio e São José. A garota não pestanejou. Vestidinho rodado, enfeitada de adálias retiradas dos jardins da praça, seguiu aquela meio moça serelepe atendendo ao chamado dos clarins de momo. Saiu desembestada pela Rua da Imperatriz atendendo ao chamado da folia. Parecia que Vassourinhas fosse seu bloco preferido. O frevo mexia com ela como se fosse o seu outro lado avesso; como se seus "infernos" de menina presa, educação rigorosa, cedessem lugar a liberdade que só o frevo traduz pela sua cadência. Vendo esse movimento, senti-me compelido por aquela menina tão animada, (triste, por que não dizer?) e segui seu itinerário. Ao me aproximar da Rua Nova confirmei que se tratava mesmo de Vassourinhas. Coincidentemente era e é meu preferido. Provavelmente também o dela, imaginei.
Ao chegar à Ponte de Ferro (cartão postal do centro do Recife), uma multidão já se acotovelava. Não eram dez horas da manhã, mas havia gente “a dar com pau” (expressão corriqueira no Nordeste) entregue aos líricos frevos de bloco. Lembro de um refrão cantado a centenas de vozes: “Na Rua da Imperatriz, eu era muito feliz, vendo o bloco desfilar, acorda Apolônio...” Comecei a cantar e, emocionado, perdi-me dela. Contudo, entendi que, conhecendo o Recife como dava a entender, mesmo não sendo maior de idade, saberia voltar pra sua casa na Praça Maciel Pinheiro. Eu não tinha certeza que morasse ali, mas algo me garantia por dentro que fosse. Provavelmente, num dos belos sobrados que só os ricos poderiam, na época, residir. Então relaxei e continuei cantando meu frevo de bloco preferido e outros mais.
Tomei uns porres de laça-perfume, alternados com rum e coca-cola e esqueci que naquela segunda-feira era dia de "branco". Eu trabalhava num comércio cujos donos eram de origem judia e não nos davam feriado nem mesmo no carnaval. Voltei às pressas atravessando a multidão que se acotovelava agora pela rua Imperatirz. Surpreendentemente, lá vai aquela menina conduzida por uma mulher que parecia ser sua ama. Pude vê-la mais de perto ao ponto de perceber sua cara feia por ter sido retirada do frevo quase que a força. Fiz um ar de riso em sua direção, mas ela me olhou cheia de dúvidas ignorando-me com razão. Mesmo assim, cumprimentou-me com um riso tímido, logo encerrado com um puxão que aquela mulher lhe dera pelo braço. – Como é o nome dessa menina, indaguei à mulher. – Clarice, a mulher respondeu, mas logo se retirou. Antes de entrar no sobrado bonito que fica numa esquina, a menina gritou: CLARICE LISPECTOR é o meu nome! A mulher puxou-a novamente e adentrou no sobrado que, como imaginei, deveria ser mesmo sua casa. Nesse dia, o meu patrão nos liberou mais cedo, às 16 horas. Afinal, o movimento não era bom por conta do carnaval e aquele “judeu” me deu folga da padaria. Fiquei por ali, pois essa praça era e ainda é até hoje um dos grandes focos de folia do nosso carnaval. Pra minha surpresa, vejo Clarice na minha frente sentadinha num banco da praça. Do alto da varanda do casarão, uma pessoa “pastorava” aquela menina linda e triste ao mesmo tempo – conjugação não muito comum de encontrar numa menina meio moça. Não tive dúvidas. Cheguei pertinho dela e fiquei, discretamente, “piruando” o que ela estava fazendo. Ela estava desenhando cenas do carnaval, inspirada na manhã em que nos divertimos na Rua Nova ao som de Vassourinhas. Rabiscava direitinhos a rua estreita, os enfeites de carnaval (hoje decoração), as pessoas, os lança-perfumes, as serpentinas, etc. Embaixo, escrevia um poema que não deu pra ler, pois sua letra não era legível. Deixa-me ler esse poema, perguntei. – Não, me respondeu ao mesmo tempo comprimindo o caderno sobre seu corpo para que eu, de fato, não lesse. Seu nome é memo Clarice, perguntei como se já não soubesse. Lispector, respondeu novamente e saiu correndo direto pra sua casa.
Nunca mais eu a vi. Sua lembrança sempre se renovava em cada carnaval, em cada frevo de bloco. Muito tempo depois, passeando com o controle remoto pela TV encontrei Clarice Lispector numa entrevista na Cultura e me lembrei de tudo. Era ela sim, pois seu rosto embora modificado pelo tempo permanecia com os mesmos traços entremeados pelo olhar triste e de difícil sorriso, igualzinho ao que eu vi naquela segunda-feira de carnaval... Ela fumava muito e acendia um cigarro após o outro. Suas mãos pareciam trêmulas, como que não só fumasse, mas também bebesse.
Subitamente um barulho ensurdecedor me sacode. O coração batia forte por conta do susto daquela moto extravagante na porta da minha casa. Maldita moto que não me deixou completar tão lindo sonho com minha escritora preferida... Passei o resto do dia mal humorado e torcendo para que aquele sonho virasse recorrente.
A SEGUIR, ALGUNS PENSAMENTOS DELA DIVULGADOS PELA INTERNET..
Clarice Lispector
Clarice Lispector (1920 - 1977), escritora brasileira de origem judia nascida na Ucrânia [Biografia de Clarice Lispector]
1 - 25 do total de 1476 pensamentos de Clarice Lispector
![](/usuarios/59865/fotos/683777.png)
"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever
Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.
Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
(A Hora da Estrela)
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed. - Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro – 1994
Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.
(Perto do Coração Selvagem)
Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.
(A paixão segundo G.H)
E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano
Quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora, pois tudo passa a acontecer dentro de nós.
...estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.
... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, espararei quanto tempo for preciso.
Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar.
Eu não: quero é uma realidade inventada.
e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
Porque há o direito ao grito.
então eu grito.
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil."
![576881.jpg](http://www.recantodasletras.com.br/usuarios/59865/fotos/mini/576881.jpg)
Por Carlos Sena
Manhã de carnaval. Era uma segunda-feira e pequenos movimentos carnavalescos começavam a despertar no entorno da Praça Maciel Pinheiro. Ouvi um apito imaginário nos arredores e pensei que fosse um frevo de bloco que estivesse ensaiando seu lirismo. Não! Era ela que se aproximava da praça como que conduzida pela atmosfera lúdica, bucólica, alegre daquele segundo dia de carnaval em Recife. Sentou-se num banco da praça e com toda graça tirou uma dália do jardim, depois mais uma e assim outras e colocou no seu cabelo. Tinha um semblante meio triste, mas se percebia CLARAMENTE que sua intimidade com aquele momento lhe deixava esfuziante e feliz. De repente, um clarim entoa a saída de um bloco nas imediações da Rua Nova. Anunciando que “Vassourinhas” (das mais importantes agremiações carnavalescas do Recife) estavam por ali, preparando-se para invadir as ruas estreitas do bairro de Santo Antônio e São José. A garota não pestanejou. Vestidinho rodado, enfeitada de adálias retiradas dos jardins da praça, seguiu aquela meio moça serelepe atendendo ao chamado dos clarins de momo. Saiu desembestada pela Rua da Imperatriz atendendo ao chamado da folia. Parecia que Vassourinhas fosse seu bloco preferido. O frevo mexia com ela como se fosse o seu outro lado avesso; como se seus "infernos" de menina presa, educação rigorosa, cedessem lugar a liberdade que só o frevo traduz pela sua cadência. Vendo esse movimento, senti-me compelido por aquela menina tão animada, (triste, por que não dizer?) e segui seu itinerário. Ao me aproximar da Rua Nova confirmei que se tratava mesmo de Vassourinhas. Coincidentemente era e é meu preferido. Provavelmente também o dela, imaginei.
Ao chegar à Ponte de Ferro (cartão postal do centro do Recife), uma multidão já se acotovelava. Não eram dez horas da manhã, mas havia gente “a dar com pau” (expressão corriqueira no Nordeste) entregue aos líricos frevos de bloco. Lembro de um refrão cantado a centenas de vozes: “Na Rua da Imperatriz, eu era muito feliz, vendo o bloco desfilar, acorda Apolônio...” Comecei a cantar e, emocionado, perdi-me dela. Contudo, entendi que, conhecendo o Recife como dava a entender, mesmo não sendo maior de idade, saberia voltar pra sua casa na Praça Maciel Pinheiro. Eu não tinha certeza que morasse ali, mas algo me garantia por dentro que fosse. Provavelmente, num dos belos sobrados que só os ricos poderiam, na época, residir. Então relaxei e continuei cantando meu frevo de bloco preferido e outros mais.
Tomei uns porres de laça-perfume, alternados com rum e coca-cola e esqueci que naquela segunda-feira era dia de "branco". Eu trabalhava num comércio cujos donos eram de origem judia e não nos davam feriado nem mesmo no carnaval. Voltei às pressas atravessando a multidão que se acotovelava agora pela rua Imperatirz. Surpreendentemente, lá vai aquela menina conduzida por uma mulher que parecia ser sua ama. Pude vê-la mais de perto ao ponto de perceber sua cara feia por ter sido retirada do frevo quase que a força. Fiz um ar de riso em sua direção, mas ela me olhou cheia de dúvidas ignorando-me com razão. Mesmo assim, cumprimentou-me com um riso tímido, logo encerrado com um puxão que aquela mulher lhe dera pelo braço. – Como é o nome dessa menina, indaguei à mulher. – Clarice, a mulher respondeu, mas logo se retirou. Antes de entrar no sobrado bonito que fica numa esquina, a menina gritou: CLARICE LISPECTOR é o meu nome! A mulher puxou-a novamente e adentrou no sobrado que, como imaginei, deveria ser mesmo sua casa. Nesse dia, o meu patrão nos liberou mais cedo, às 16 horas. Afinal, o movimento não era bom por conta do carnaval e aquele “judeu” me deu folga da padaria. Fiquei por ali, pois essa praça era e ainda é até hoje um dos grandes focos de folia do nosso carnaval. Pra minha surpresa, vejo Clarice na minha frente sentadinha num banco da praça. Do alto da varanda do casarão, uma pessoa “pastorava” aquela menina linda e triste ao mesmo tempo – conjugação não muito comum de encontrar numa menina meio moça. Não tive dúvidas. Cheguei pertinho dela e fiquei, discretamente, “piruando” o que ela estava fazendo. Ela estava desenhando cenas do carnaval, inspirada na manhã em que nos divertimos na Rua Nova ao som de Vassourinhas. Rabiscava direitinhos a rua estreita, os enfeites de carnaval (hoje decoração), as pessoas, os lança-perfumes, as serpentinas, etc. Embaixo, escrevia um poema que não deu pra ler, pois sua letra não era legível. Deixa-me ler esse poema, perguntei. – Não, me respondeu ao mesmo tempo comprimindo o caderno sobre seu corpo para que eu, de fato, não lesse. Seu nome é memo Clarice, perguntei como se já não soubesse. Lispector, respondeu novamente e saiu correndo direto pra sua casa.
Nunca mais eu a vi. Sua lembrança sempre se renovava em cada carnaval, em cada frevo de bloco. Muito tempo depois, passeando com o controle remoto pela TV encontrei Clarice Lispector numa entrevista na Cultura e me lembrei de tudo. Era ela sim, pois seu rosto embora modificado pelo tempo permanecia com os mesmos traços entremeados pelo olhar triste e de difícil sorriso, igualzinho ao que eu vi naquela segunda-feira de carnaval... Ela fumava muito e acendia um cigarro após o outro. Suas mãos pareciam trêmulas, como que não só fumasse, mas também bebesse.
Subitamente um barulho ensurdecedor me sacode. O coração batia forte por conta do susto daquela moto extravagante na porta da minha casa. Maldita moto que não me deixou completar tão lindo sonho com minha escritora preferida... Passei o resto do dia mal humorado e torcendo para que aquele sonho virasse recorrente.
A SEGUIR, ALGUNS PENSAMENTOS DELA DIVULGADOS PELA INTERNET..
Clarice Lispector
Clarice Lispector (1920 - 1977), escritora brasileira de origem judia nascida na Ucrânia [Biografia de Clarice Lispector]
1 - 25 do total de 1476 pensamentos de Clarice Lispector
![](/usuarios/59865/fotos/683777.png)
"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever
Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.
Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
(A Hora da Estrela)
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed. - Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro – 1994
Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.
(Perto do Coração Selvagem)
Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.
(A paixão segundo G.H)
E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano
Quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora, pois tudo passa a acontecer dentro de nós.
...estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.
... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, espararei quanto tempo for preciso.
Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar.
Eu não: quero é uma realidade inventada.
e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
Porque há o direito ao grito.
então eu grito.
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil."