Legiões

Na verdade, as crianças correm e os ratos passam pelo porão escuro que estou sentado, só. A penumbra paira. A cadeira de palha revestida range, as crianças gritam, e os ratos engolem as baratas vivas. Não mastigam, não cospem. Há apenas uma televisão ligada, um livro aberto e um cigarro morto no cinzeiro escuro. A noite chega sorrateira, lenta, miúda, úmida. A noite é pura melancolia. A noite é um casulo de poetas. Estou só, como há tempos, como há anos, como a toda uma vida. Não rastejo, mas sou um animal feito um rato, ou uma barata. Meu cérebro atrofiou, minhas pernas endureceram e nada mais é luz. As crianças jogam bola como eu jogava, de perna esquerda, e agora me restam apenas contos de causos de amor, e tragédias. Diria eu que a vida passa, e passa e se vai. Mas isso foi dito por milhares, animais como eu. O óbvio está dado. O banal é mais interessante que o sensacional. O banal é sensacional! Não precisamos de céus e estrelas e infinitos. Nem sempre precisamos de abstratismos. O brilhantismo está nos ratos e nas baratas e nos animais sem cérebro. Uma formiga é mais interessante que mil barras de ouro. Salve-se, se puderes.