Quando a mentira pode ter serventia
Quando era menina, não havia catecismo formalizado como é hoje. As crianças eram preparadas para vivenciar a religiosidade, em suas próprias famílias. Embora possa causar estranheza, era um hábito comum e realizado com relativo êxito. Como minha mãe ficou viúva muito cedo, e tendo seis filhos, precisava trabalhar, meus avós assumiram algumas responsabilidades e dividiam com ela a tarefa de nos educar.
Assim, aos nove anos, fui preparada por meu avô para a primeira comunhão. Bem, na verdade, sendo um tanto quanto traquina, logo percebi que não era tão difícil escapar do que considerava um “martírio” na época. Afinal, decorar os atos de contrição, confissão, e nem sei quantos atos compunham uma “ladainha” de orações, as quais eu nem entendia muito bem, era algo aterrador!
Logo, convenci meu avô que era mais fácil eu decorar sozinha, e que ele poderia depois ir conferindo meu progresso. Acredito que esta foi minha primeira negociação bem sucedida. Vovô me chamava todo dia, entregava-me o missal e lá ia eu para o quarto estudar. Pedi a ele que trancasse a porta e só abrisse após o tempo reservado para o estudo, pois era demais a tentação de ir brincar. Imagino com que orgulho vovô devia ter aceitado minha sugestão!
Portanto, ele fechava a porta e marcava o horário que voltaria. Ato contínuo, eu pulava a janela e lá ia toda animada brincar com meu primo, longe da casa para não correr o risco de ser descoberta. Morávamos numa chácara, um pedaço do paraíso, que oferecia infinitas possibilidades para qualquer criança brincar. Quando o tempo estava acabando retornava como louca, e logo abria o missal. Invariavelmente, quando vovô entrava no quarto, estava eu lendo em voz alta, as orações que haviam sido marcadas para aquela tarde. Isso ocorreu todo o tempo em que ele me preparava, e quando ele me pedia para recitar as orações, sem olhar para o tal livrinho, eu o distraia com perguntas e acabava me livrando da “sabatina”.
Finalmente chegou o grande dia. Tudo foi observado para aquele ritual tão significativo. Vestido branco, vela, fita, missal novo e, claro, o momento crucial: a confissão. Para uma criança, o confessionário, daquela época, era um “móvel” enorme! Lembro-me que pensei que era um guarda louça gigante, com aquela divisória repleta de buraquinhos, de onde se ouvia a voz do padre, sussurrando como se viesse do além. Quando ele pediu que eu contasse meus pecados, não conseguia me lembrar de um sequer. Fiquei tão aflita que, de puro desespero, inventei uns bons pecados com receio de não estar a altura da expectativa daquela voz roufenha. E quando achei que havia terminado meu suplício, a voz assustadora mandou-me rezar o ato de contrição!
Céus! Jamais esquecerei o pânico que senti. Se não me vinham os pecados, que bem sei faziam parte de meu cotidiano, imaginem buscar algo que não havia sido registrado! Pela primeira vez entendi a razão de todo empenho de meu avô. Ocorre que aos nove anos, não se tem muita noção do perigo e o instinto de sobrevivência fala mais alto.
Mais uma vez precisei achar uma saída de emergência. Não pensei duas vezes. Lembrando-me das amigas de vovó, que viviam na igreja e rezavam quase assoprando, de modo que ninguém conseguia entender o que diziam, tratei de imitá-las na melhor performance que pude improvisar. Devo ter sido convincente, pois o padre me absolveu sem questionamento algum. Ufa! Estava salva.
Minha mãe organizou um almoço em família, e assim, o dia todo foi festivo e alegre. Já no fim da tarde, nos recolhemos, encerrando mais um dia em nossa vida.
Naquela noite, enquanto todos dormiam, eu me virava de um lado para outro, sem conseguir descansar meu espírito. A mentira corroia minha consciência e meu coração se agitava cada vez mais. Tal foi a intensidade do remorso que senti que não houve outro jeito. Levantei-me no escuro e corri até o quarto de vovô.
Coitado! Assustou-se, junto à vovó, ao ser acordado por mim, já em prantos. Ajoelhei-me no chão, ao seu lado, e de pronto confessei o que havia feito. As manobras para não estudar e por fim, a ousadia de mentir para o padre. Tudo isso chorando, e pedindo que ele me perdoasse e não permitisse que o “capeta” viesse me buscar. Às vezes penso que é uma pena o ser humano perder a inocência, que lhe permite experimentar a vida na simplicidade do sentir e com ela então, realmente aprender a viver.
Claro que vovô, prontamente, me socorreu, pois do contrário acredito que nem ele teria sossego pela eternidade! Acalmou-me e garantiu que Deus já havia me perdoado. Foi então que me disse:
- Pri, você mentiu para mim durante vários dias, enganou-me e eu realmente acreditei em você. Hoje, festejamos o dia todo, cantamos, brincamos e estávamos todos felizes. Mas pelo que vejo agora, a única pessoa que não aproveitou a festa, foi você. Acho que a mentira não fere a quem ela engana, mas ao próprio mentiroso, roubando-lhe o sossego e a alegria.
Ouvi atentamente o que disse e talvez, pelo estado emocional em que me encontrava, suas palavras ficaram impressas em meu coração. Deitei-me entre ele e a vovó e adormeci.
Obriguei-me a decorar todos os atos e orações que encontrei no missal, com uma dedicação sem precedentes. Hoje, a bem da verdade, não me recordo de nenhum destes textos, mas lembro-me daquele dia como se fosse hoje.
Que a mentira é uma falha de caráter, pode ser algo óbvio para alguns adultos, mas para uma criança, a mentira não tem a mesma conotação. No entanto, é na infância que se fomentam os valores que determinarão a índole do adulto que ela se tornará..