Ah, os menosprezos!
No Morro o calor era grande. Chuviscava e, de vez em quando, ventava. À observação de minha companheira, a quem chamavam de Conceição, perguntando se estava ouvindo “Conceição”, na voz de Cauby, não consegui responder. Fiquei calado por alguns minutos, até que uma sua amiga com voz alta recitou melodiando “Viver Morro”. Ouviu-se de pronto uns tiros de arma de fogo e gritos.
- Minha Nossa Senhora! – exclamou Conceição, ferida. – Não é bala perdida!
A sua amiga continuou recitando “Balas perdidas”:
Balas perdidas,/ Polícia ou Favela?// A maioria das vítimas é gente humilde e trabalhadora...
Do Morro, eu gostava de ver da janela gradeada do botequim da Mira, a linda paisagem. Do lado de fora, uma ambulância esperava. Subimos para o socorro de urgência e, com a sirene ligada a todo volume, descemos o Morro pela contramão até o Hospital da Restauração. No leito do hospital ela dormiu e sonhou, alguns, que se tornaram realidade na vida:
“Com a chegada do Natal, os poderosos conseguem fazer um festival de hipocrisia, aos quatro cantos do planeta, com festividades gigantescas... Mandam mensagens natalinas e cristãs... Bilhões de dólares são derramados com gastos militares, apesar da miséria absoluta dos países latinos e africanos...”
“- Morri! – pensou, mas no mesmo instante se via ora sentada, ora de cócoras. As luzes das janelas dos edifícios, para Conceição eram como as das favelas, tão distantes. Ela ouvia vários intermitentes sirenes das viaturas das polícias Civil e Militar abertas e buzinando descontroladamente, com luzes vermelhas e azuis enfileiradas nas duas subidas do Morro. As escadarias, cheias de imundícies: merda, lixo, vômitos... um homem louco, ora parecido com um padre, ora parecido com um militar.
Como padre: ‘ Em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo, amém...’.
Como militar: ‘ Todos ladrões, assassinos, bandidos, vagabundos, todos, todos... o lugar é na cadeia.’
Sobem as escadarias vários padres, militares, mendigos, operários, catadores de lixo, prostitutas, cegos tateando, todos pisando nos dejetos, vômitos, alguns caindo de escadaria abaixo... Vozes: ‘É um inferno!’”
Como era de costume, os jovens conversavam entre si. Na Era do Rádio ouvia-se muito na voz de Dalva de Oliveira, a música de Herivelto Martins: “Se o doutor subir lá na favela/ vai ver coisas de cortar o coração/ barracos caindo/ crianças chorando/ pedindo pedaço de pão”. E ainda: “Barracão de zinco/ pendurado lá no morro/ pedindo socorro/ lá no céu...” As autoridades nunca olharam e nem subiram os morros durante décadas, e hoje o que vemos? Aonde iremos nós?
Ouve-se “Conceição”, na voz de Cauby:
“Conceição/ Eu me lembro muito bem/ Vivia no morro a sonhar/ Com coisas que o morro não tem... Se subiu/ Ninguém sabe, ninguém viu/ Pois hoje o seu nome mudou/ E estranhos caminhos pisou...”
Muitas vezes perguntei a mim mesmo, como é possível aos moradores do Morro como Conceição suportarem os menosprezos daquela vida? Certa vez, eu a fiz dizer o porque de querer mudar seu nome.
A maioria dos jovens, após ouvirem “Conceição”, ficam a imaginar como será a vida no Morro.
- Por onde anda Avagina?
- Se mudou e nunca mais voltou.
- Dizem que está no Rio, e mudou de nome. Se fosse erro de grafia não precisava de advogado...
O seu pai assistia filmes o tempo todo. Chamavam-no de “mago-da-tela”, porque ele sabia os nomes dos artistas de cinema de cor: Marlon Brando, Humprhey Bogart, Cornel Wilde, Victor Mature, John Wayne, Robert Taylor, Alan Ladd, Gare Cooper, Errol Flynn, Tyrone Power, Gregory Peck, Paul Newman, Charlton Heston, Burt Lancaster, Arturo de Córdova... Marilyn Monroe, Sofia Loren, Elisabeth Taylor, Grace Kelly, Dorothy Lamour, Ingrid Bergman, Greta Garbo, Ava Gardener e Gina Lolobrígida... E foi em homenagem às artistas de cinema Ava Gardener e Gina Lolobrígida, que seu pai registro-a em cartório como Avagina. Ava, de Ava Gardner e Gina, de Gina Lolobrígida.
(Risos)
- Estão dizendo que ela é candidata a deputada federal...
- Avagina – Avagina – diziam em coro – Avagina...
Nota: O final desse texto foi extraído do livro: “Drogas & Crimes”- Capítulos XVII, pp. 52-3 e XXIII, p. 86.