Migalhas  de mim

 
 
                        Na verdade, o leitor procura o escritor para saber como ele reage ou reagiu aos acontecimentos da vida. É isso que o leitor quer. Ver o clima da história, os impactos sentidos por quem escreve. É aquela velha ânsia de saber o que fazer. É por isso que nos encantamos e até  amamos certos autores, pois é comum nos identificarmos com as estórias.
                        Escrevi minhas primeiras  crônicas  ainda acanhado, tímido, narrei acontecimentos vividos por mim, foram crônicas quase autobiográficas, mas sem me mostrar muito, apesar de ter me mostrado, entendem?  Desejava  mais que o leitor se divertisse com assuntos leves e queria muito humor, uma maneira de suportar a vida, já  que não é tão fácil  viver. Há que ter poesia...
                        Agora, estou na minha segunda fase, e quero  apresentar algumas  miudezas de  mim mesmo. Uma espécie de catarse de momentos  não tão marcantes,   mas que significaram qualquer coisa para mim, com algum sentido psicológico..
                        Tenho ultimamente falado dos meus amores  antigos, numa espécie de saudade.
                        Para minha surpresa, vejo que fui deixando restos de mim nos meus relacionamentos, não só nas namoradas, mas também nos amigos e até estranhos  que me deixaram alguma impressão maior.
                        Logo me vem à mente a minha infância,  na rua Santo Amaro, no Rio de Janeiro.  Estava com sete anos.
                        Parece que estou vendo o grande cômico da época, o Oscarito, o nosso Cantinflas,   entrando apressado,  correndo, no edifício onde eu morava. No térreo, no primeiro apartamento do corredor, abria-se uma porta rapidamente e o Oscarito sumia lá dentro.  Talvez funcionasse algum escritório da antiga Atlântida, produtora dos filmes dele. O nome completo dele era Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Dias. Nasceu em Málaga, na Espanha e naturalizou-se brasileiro. 
                       
                        Mais ou menos quarenta e cinco minutos depois,  ele saía correndo. E eu na espreita, atrás de uma pilastra.  Na porta do edifício,  um carro com motorista já o esperava. Nessa altura,  na frente do prédio  eu já havia chamado uns cinco ou seis colegas para corrermos pra cima do Oscarito. Era por isso que ele entrava e saía correndo. Ele já me manjava,  e nunca consegui ganhar dele na corrida. Ficava só nos gritos: “ Oscarito, Oscarito, Oscarito!” Ele ria, se atirava no carro e desaparecia na poeira. Se ele soubesse o meu nome, diria, fatalmente: “Calma, Gegê!”  Alguns me chamam de Gê. Ele estreou com essa peça no teatro revista. Curiosamente, uma amiga recente está sempre me pedindo calma.   
                       
                        Com certeza, eu deixei um pedacinho de mim nessa cena, que se repetia de 15 em  15 dias, se não estiver delirando. A memória antiga distorce muito as coisas.         
                        Mas meus amigos e amigas, nem sei por  que estou contando isso. Ah! já sei. É que queria contar mesmo é que nesse corredor, lá no fundo, morava o porteiro Ramiro. E este porteiro do prédio tinha uma filha chamada Armeli.  Nesta altura, minha mão treme, imaginando o comentário ferino que virá do meu adorável amigo Ciro.
                        A Armeli, uma moça linda, tinha pelo menos o dobro da minha idade, talvez uns treze anos. Agora me lembro: sim, tinha treze anos, meio alourada, alta.
                        E eu sonhando entrar correndo no apartamento dela para dar-lhe um autógrafo, do jeito que o Oscarito  fazia.
                        Claro, jamais poderia fazer isso, eu um pirralho de sete anos. Desejei demais  lhe oferecer um sonho maravilhoso da padaria da Belmira, que ficava na  esquina da rua Santo Amaro. Sempre fui mão aberta, gosto de presentear.
                        Nunca consegui  dar o meu sonho pra ela...  Essa foi, sem dúvida, a minha primeira frustração  na vida, em idade tão tenra! 
                        Não posso ver um sonho  de padaria que me bate uma certa angústia...