Atravessando Infernos

(À Jéssica Ribeiro, por ter retornado à minha vida inúmeras vezes, e por não ter deixado que a barca soçobrasse).

*

"Você me diz acomodado e que isso é normal

Mas enquanto não é com você..." - Cólera, em "Dia e Noite, Noite e Dia".

São Paulo, 25 de novembro de 2010.

Hoje tudo me parece pior do que ontem, e o conforto de saber que o amanhã será pior não me ajuda muito.

Os pássaros estúpidos da minha avó cantam, os vira-latas malditos não percebem que hoje não é o meu dia e vêm atrás de mim, o céu é hostil, tão hostil quando o estranho que vi no reflexo de uma vitrine de uma loja de calçados de quinta categoria que fica em frente ao ponto onde pego o ônibus que me leva ao calvário.

Minha vida é uma merda.

Novamente, pela milésima vez consecutiva, chego atrasado no lugar que odeio e que preciso tolerar.

Será que preciso?

Será que preciso mesmo, caralho?

O telefone toca tão logo me logo, e do outro lado da linha, às nove da manhã, uma pessoa que não conheço grita comigo.

Minhas bochechas ficam infladas, sendo um dique para a enxurrada de impropérios que se acumulam no meu âmago amargo.

Simplesmente taco o headfone longe e derrubo a ligação, e cai outra, e eu derrubo, e cai mais uma, e eu simplesmente arranco os cabos do telefone e vou pro banheiro com o mais sombrio dos semblantes, eu, que sempre fui tido por palhaço risonho, eu, na beira de um abismo negro sem fundo e sem volta, ignorando perguntas, palavras de ordem e os "bom dia" que cruzam meu caminho.

Estou em um dos reservados com fios do meu cabelo nos meus dedos, chorando sem lágrimas e sem saber o porquê, cercado por quatro paredes brancas e indiferentes, pensando em beber no gargalo o fenol que sei que fica no privativo dos cadeirantes ou em assassinato por estrangulamento.

E no meio do negrume um pensamento dourado perpassa meu campo de visão: pedir as contas.

É só isso?

É só sair daqui? Será?

Então eu me levanto e lavo as mãos e o rosto, seco tudo com papel toalha fedido e saio, e lá está ela, a supervisora, com quatro pedras na mão.

- Onde você estava? Você endoidou ao arrancar os cabos do telefone? Agora vou ter que abrir um chamado e...

- CALA a boca e senta. Por favor.

Meus olhos são frios e distantes e minha voz é mansa, serena; um sussurro semi-inaudível.

Ela obedece, e sua aura de sargento desaparece e seu olhar ganha um brilho de preocupação sincera.

- O que houve?

- Tô fora!

- Como assim?

- Quero sair dessa merda. O que preciso fazer?

- Sim, eu te explico, mas, me conta: o que houve?

- Cansei, caralho!

E falo por cinco minutos. Ao terminar, me sinto calmo e leve.

Foi a vez dela falar.

No fim, resolvi ficar.

Preciso saber o que minha mãe tem a dizer a respeito. Afinal, meu sustento virá dela se eu ficar desempregado.

À noite, explico a ela a situação. Com pormenores. Ela diz:

- Vai ficar passando raiva até quando? Sai logo de lá!

*

São Paulo, 1 de Dezembro de 2010.

Já não faz mais sentido responder esses mil e-mails iguais, e nem atender as mesmas antas irascíveis. O que dói um pouco - além, claro, da desesperança crônica do porvir - é perder o contato com quem aprendi a amar. Bom, foda-se.

- Tó! - Digo à supervisora, estendendo uma folha de sulfite maculado com meus garranchos.

- O que é isso?

- Minha carta de demissão, ué.

Os olhos dela se arregalam. Mas só um pouco. Ela pergunta:

- Tem certeza? Não quer conversar um pouco?

- Te agradeço - respondo - Mas é isso mesmo. Não posso limitar minha inteligência à tacanhez do cuzão do seu chefe.

Ela ri. E diz:

- Nem me fale...

Algumas semanas atrás ela disse que só não jogava tudo pro alto por causa da filha de quatro anos.

Eu não tinha nada a perder.

*

São Paulo, 6 a 9 de Dezembro de 2010.

Agora cumpro o aviso-prévio à minha maneira: faço o que quero e quando quero. As pessoas me advertem que posso ser advertido.

- É? - Eu devolvo.

Durmo na mesa, fico meia hora no banheiro pelo menos três vezes por dia e escrevo textos de suicídio e putaria e os imprimo e saio distribuindo - nada que eu já não tenha feito diariamente nos últimos dois anos, mas agora é diferente: agora eu não me importo de verdade.

As pessoas do telefone que abusam da minha boa vontade são transferidas para números que variam entre manicômios judiciais a restaurantes cinco estrelas; as que me exasperam sofrem com a minha falta de interesse e com minhas propositais perguntas repetitivas e respostas vazias e sem sentido.

Algumas eu mando tomar bem gostoso no meio do cu, mesmo.

As pessoas dizem que eu não devo "causar", porque futuramente - "porque não se sabe o futuro", como elas mesmas dizem - eu posso precisar da empresa.

Eu digo que eu prefiro o suicídio a voltar a botar os pés nesse lugar.

Eu digo que prefiro disputar uma vaga de gari com um analfabeto a voltar aqui.

Eu digo que esse é um pensamento típico de alguém que está há 6 anos no mesmo lugar vivendo de dissídio, acomodado, sonhando com o dia que vão resolver mandar todos embora nalgum corte repentino.

Vocês estão no lugar certinho, eu digo.

Hoje, me recuso a responder e-mail com erro ortográfico. E eles mandam dois ou três subseqüentes cobrando a resposta do primeiro, até que ligam e eu digo: "cedilha não precede E ou I. Quando você arrumar, eu respondo".

E desligo.

*

São Paulo, 10 de dezembro de 2010.

Ontem bebi demais com os amigos. Já é meio-dia. Ligaram três vezes atrás de mim.

Não me ligaram só por que hoje é sexta-feira, o dia que tem mais movimento e que todos enlouquecem.

Eles se importam comigo. De verdade.

Sinto-me um Chinaski da vida. Factótum é o livro que define minha vida, hoje.

*

São Paulo, 15 de Dezembro de 2010.

Novamente não fui.

Acordei uma da tarde.

Estou no gramado do Parque do Ibirapuera, encostado em uma árvore que não sei o nome, vendo o pôr-do-sol, de bermuda, com uma garota exuberantemente linda que está entre minhas pernas, contando a história do Dom Casmurro enquanto eu aliso suas coxas e beijo seu pescoço; o telefone toca. Uma voz conhecida diz:

- Ouvi dizer que vão te dar Justa Causa...

- É?

*

São Paulo, 3 de Janeiro de 2011.

Hoje é o dia que oficial, legal e definitivamente me livro desse antro de acefalismo e corrupção barata.

Eu sabia que minha ex-supervisora - seguindo as recomendações do babaquíssimo coordenador - não me deixaria subir e abraçar meus queridos, portanto, vim no horário de almoço dela. Abraço quem considero e aproveito o ensejo pra imprimir alguns textos. Cem folhas.

Quando ela chegou com sua marmitinha suja em mãos, eu estava colocando as folhas na mochila e ela se apressou e me arrastou pro RH. Uma vez lá, na fila, disse - com bafo de lingüiça e batata frita com maionese - disse:

- Que mancada você deu comigo, hein?

- Cuma?

- Pô, por que pediu o aviso-prévio se já sabia que não ia cumprir?

Eu rio.

- Tô falando sério!

Fecho a cara. Ela estava mesmo falando sério.

- Poxa, fiquei com um puta desfalq...

Interrompo a ladainha com o indicador nos lábios dela. Chego perto dela e sussurro no pé do ouvido:

- Tem três semanas que eu não acordo pensando em suicídio. Você acha mesmo que eu me importo com o que você passou aqui?

Ela fica sem graça. E me pede desculpas.

Ela é gente boa. Gente da gente, como se diz por aí.

Observo minha Carteira de Trabalho sendo baixada.

Entrego meu crachá.

Assino algumas folhas.

Depois de 4 anos tudo o que eu vou receber é o aviso-prévio.

Depois de 4 anos tudo o que eu tenho é história pra contar e células cancerígenas doidas pra enlouquecer e covardemente me definhar.

E eu minha ex-supervisora trocamos abraços e desejos de boa sorte.

Ela me leva até a porta de entrada e saída.

Era a última vez que eu saía dali.

E saio. Piso na calçada. Olho o céu cinzento e carregado.

Experimento uma sensação inenarrável de liberdade enquanto pulo as mesmas poças que jamais voltarei a ver.

"E entre bolhas tento soltar meus pés e as algas querem dançar

Só mais uma valsa (somos um casal rodando entre as águas-vivas)"

*

Cidade: São Paulo. Ano: 2011.

Janeiro, Fevereiro, Março e metade de Abril sem saber o que é mulher.

Janeiro e Fevereiro de facas nos pulsos em madrugadas quentes e insones; entrevistas de emprego frustrantes e depreciativas. Amigos morrem.

Março acontece a contratação no emprego na Avenida Paulista.

Unhas encravadas, dentes abertos sangrando, hemorragias nasais, coceiras inúmeras nas axilas.

Reuniões:

- Você precisa cortar o cabelo e fazer a barba, senão, tchau.

Me rendo ao Sistema.

Reuniões:

- Você precisa usar roupa social. Precisa usar sapatos. E fazer a barbinha, que parece sujeira.

Os dias passam rápido e sem sentido. Os três ônibus pra voltar pra casa deixam a bunda quadrada e com coceiras; dormente e com coceiras. Parece que tenho pulgas no rego.

Reuniões:

- Tatuagem à mostra, nem pensar!

Reuniões:

- Sim, você terá essas mil tarefas, mas seu salário, obviamente, será reajustado.

Conjuntivite.

Agosto chega, e com ele o cúmulo da desgraça: afastamento de 50 dias com uma tala cobrindo metade do antebraço.

Uma vontade nefasta de deixar de existir, de deixar de se arrastar feito um verme nojento pelas ruas de uma cidade que não tem jeito.

Extração de dente.

Reuniões:

- Querem te mandar embora.

Reuniões:

- Querem que você interaja, que você se mostre mais motivado.

Chegar em casa e dormir pra acordar e ir trabalhar. Carregar caixa com mão inchada pós-lesão. Quinze ônibus por dia. Acordar com as galinhas, vendo o dia passar por janelas fechadas, vendo as manhãs virarem tardes em vagões abarrotados, com ar viciado, com antebraços grudentos e peidos de velhas.

Reuniões:

- Precisamos de você no sábado.

24 horas reorganizando em ordem alfabética um arquivo com mais de sete mil nomes. A madrugada faminta e silenciosa, as travadas cerebrais que davam diante da dúvida se "B" vem depois ou antes de "A". A vontade de cagar louca.

Reuniões:

- Você não se esforça, dizem.

Com camisa social, caminhadas de quarenta minutos sob um sol de 38ºc. Muitas vezes pra nada.

A redução de dois ônibus pra voltar pra casa e a redução de 40 minutos pra ir ao trabalho. O sentimento de desimportância novamente; a aura de viver o que der na telha, de ouvidos tapados para as picuinhas; as picuinhas domésticas definhando nervos, mancomunando ódios contínuos que não deveriam existir; uma vontade absurda de não se resumir a um inseto asqueroso.

São Paulo, 1 de Dezembro de 2011.

A REUNIÃO:

"Que porra que eu fiz ou que eles supõem que eu não fiz agora, diabo?"

- Pega uma cadeira pra vocês.

"Mês passado queriam me mandar embora. Talvez hoje me mandem. E hoje é primeiro de Dezembro; de novo é primeiro de Dezembro e de novo ficarei à berlinda, sobrevivendo de cheque especial, cavando cada vez mais fundo a cova onde por fim serei enterrado"

- Queremos te promover. E queremos saber se você aceita.

*

Só acredite em você.

05/12/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 05/12/2011
Reeditado em 23/04/2012
Código do texto: T3374001
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