O CIRCO

LEMBRANÇAS

A história que vou contar aqui me faz lembrar outra que se passou quando eu tinha apenas cinco anos, em que certo dia, fomos eu e meu irmão mais velho, ao circo. Recebemos dinheiro para ingressos e pipoca. Na hora de comprarmos as entradas, meu irmão, para bancar o esperto, me convenceu a não comprarmos ingresso, pois sobraria mais dinheiro para pipocas e guloseimas. Aguardamos que o fiscal de lona se afastasse. Quando isso aconteceu, meu irmão e um amigo se jogaram por baixo da lona e sumiram entre as pessoas do “poleiro”. Eu que ficara um pouco pra trás, levantei a lona e coloquei apenas meio corpo pra dentro do circo, procurando pelo meu irmão. De repente sinto algo me puxando pela parte que ficara do lado de fora, pela calça. Era o fiscal de lona, irritado, ameaçando me bater e levar para a jaula dos leões. Não tive dúvida: abri o bocão, num berreiro, dizendo que meu irmão estava La dentro e queria ir até ele. O fiscal ficou tão assustado com meu choro que olhou pros lados e mais que depressa meu jogou pra dentro do circo antes que alguém pensasse que eu estava sendo espancado. Durante muito tempo, meu irmão me perturbou com esse fato. Ainda hoje, quando tenho oportunidade de ir ao circo me lembro disso. Jamais vou esquecer. Mas a história a que me propus contar é outra, que se passou cerca de seis anos mais tarde.

Morávamos já em outra cidade e certa ocasião surgiu um circo de fama internacional, enorme. Ficaria na cidade por uma semana. Nas ruas, carros com auto-falantes anunciavam as atrações: Elefantes, leões, macacos, mágicos, trapezistas e palhaços. Ainda não tinha visto circo tão grande e tão cheio de atrações. Durante a semana seguiam-se apresentações diárias e eu aguardava pelo final de semana, quando poderia assistir ao espetáculo. Na quinta-feira, anunciavam para aquela noite uma grande luta: Índio brasileiro versus Índio paraguaio – a luta do século. Entre a meninada não se falava noutra coisa. A torcida pelo Índio Brasileiro era enorme. Pela análise dos especialistas-mirins em lutas, a vitória estava garantida: Jamais o Índio Brasileiro iria perder para o índio paraguaio. A vitória era certa; era questão de honra e de espírito de nacionalidade. Naquela noite não pude ir. Iria perder o espetáculo, a luta do século, por conta de umas traquinagens que meu irmão e eu havíamos feito; estávamos de castigo. Pensei em “furar” a lona, mas me lembrei daquela outra história contada no início e tive medo do fiscal. Depois não ia adiantar mesmo ficar pensando nisso, porque meu pai estava atento se não daríamos um jeito de dar uma escapulida pela janela. Tivemos de nos conformar.

No dia seguinte acordamos cedo, ansiosos por saber o resultado da luta. Na roda de amigos a discussão era intensa e todos revoltados com a atitude covarde do índio paraguaio. Ele havia aplicado um golpe baixo e a luta foi interrompida e adiada para o próximo sábado – Onde já se viu? A polícia deveria prender esse covarde... ele não honra as calças que veste... infame! – Desde aquele momento começamos a sonhar com a possibilidade de revogarmos a sentença nos imposta pelo nosso digníssimo patriarca! Era questão de honra, também de nossa parte, darmos apoio e torcermos pelo nosso representante nacional, o Índio Brasileiro.

Sábado dia da luta. Recebemos determinações de não nos afastarmos de casa. No dia anterior, minha mãe que estava no nono mês de gravidez, havia dito que estava com pressentimentos, de quê, eu não sei. Estávamos sentados na calçada em frente de casa quando ouvimos se aproximar o carro de auto-falante do circo, seguido de outras viaturas. Anunciava para aquela noite a tão esperada revanche, se é que poderia dizer assim, visto que a primeira luta não valeu. No segundo carro, na carroceria de uma caminhonete vermelha, vinha o nosso herói, imponente, acenando com as duas mãos. Possuía cabelos compridos à altura dos ombros, segurados por uma faixa vermelha amarrada na esta. Alto, não muito musculoso mas corpulento, pele clara, branca, tão alva quanto a minha. Ali estava ele, o homem que iria resgatar nosso brio: o Índio Brasileiro. Quando ele passou todos aplaudiram, gritando vivas. Foi uma grande emoção vê-lo passar tão perto. Olhou pra mim confiante e acenou. Naquele momento senti que a vitória estava no papo. Ele seguiu acenando para as outras pessoas e eu o acompanhei por alguns metros. No quarto carro, em outra caminhonete, seguia o índio paraguaio. Esse, pele vermelha, cabelos compridos, sendo fechado, gritava, acenando com o punho fechado, provocando as pessoas por quem passava. Quanto ódio senti naquele momento! O vil covarde estava a poucos metros de distância. Mas ele não perdia por esperar: Naquela noite levaria uma tremenda surra que jamais iria se atrever a enfrentar novamente o Índio Brasileiro. Vaiamos e xingamos o índio paraguaio; só não jogamos pedra porque tínhamos receio de que ele pulasse da viatura e corresse atrás de nós... e ele bem seria capaz disso mesmo. Maldito!

O espetáculo circense estava marcado para as sete e meia da noite e no final deste o grande combate. Pouco antes das seis e meia, um tio que estava em casa disse que nos arrumássemos para irmos ao circo – Mas e o castigo? – Estávamos liberados dele. Não pensei duas vezes... em alguns minutos estávamos prontos. Lá fomos nós, eu, meu irmão mais velho e outro mais novo. Ficaram em casa: meus outros irmãos menores, meu pai, minha avó, uma vizinha muito amiga e minha mãe que não estava passando muito bem.

Chegamos cedo. Fomos uns dos primeiros a chegar. Escolhemos o melhor lugar para ficarmos; não gostávamos das cadeiras, preferíamos o poleiro por duas razões: Pelo preço e por ali encontrarmos a maioria de nossos amigos. Pouco antes do espetáculo o circo estava lotado, com crianças gritando de um lado, chorando de outro, pedindo o início do espetáculo, chamando o pipoqueiro, até que... Apagam-se as luzes. O som alto da música se interrompe. Todos se calam. Apenas um foco de luz se projeta sobre o picadeiro. Surge a figura de um senhor muito bem vestido e de cartola, microfone na mão: - Respeitável público... – Começou o espetáculo.

Seguem-se as apresentações normais: malabarismos, contorcionismo, palhaços, globo da morte, tudo muito divertido, mas devido a minha ansiedade, torcia para que terminassem logo. Quase duas horas depois, arena montada no centro do picadeiro – Respeitável público... É chegada a hora do grande combate... – Os tambores tocados rapidamente, as luzes girando e piscando, todos aplaudindo na expectativa de um bom combate. Seguiu-se alguns elogios e em seguida a divulgação de alguns anunciantes, que demoraram uma eternidade; alguns minutos depois, é anunciado a entrada do Índio Brasileiro no campo de batalha, ao mesmo tempo em que ele sobe na arena, magnífico, altivo, é ovacionado e saudado com gritos de apoio e incentivos. Minutos depois, cessadas as palmas, é anunciado a entrada do pérfido desafiante. É recebido com vaias, por todos os presentes, as quais ele retribuía com ofensas, ameaças e cusparadas. Quanto mais ele reagia às vaias, mais era vaiado. Cessados os insultos, inicia-se o combate de luta livre. Índio Brasileiro acerta um golpe e derruba seu oponente. Este se levanta revoltado e derruba por duas vezes o Índio Brasileiro; se atracam, rolando pelo chão. Todos torcendo para que nosso herói se livrasse daquele golpe. De repente o juiz aparta a luta. Índio paraguaio dera uma mordida na orelha do Índio Brasileiro, da qual escorria sangue de cor clara, mais cor-de-rosa do que vermelho, o que se via também na boca do energúmeno. Uma simples limpeza na orelha de nosso lutador e não havia mais vestígios de ferimentos. Verificada as condições de ambos os lutadores, reiniciou-se o combate. Sentíamos cada golpe aplicado. Com incentivos da torcida, Índio Brasileiro ganha novo ânimo e passa a dominar a luta, deixando em pouco tempo seu adversário prostrado no chão. Ajudantes de circo invadem a arena erguendo sobre os ombros o grande campeão.

A euforia era geral. Terminado o expediente circense, todos seguiram contentes para suas casas. Pelas ruas todos comentavam sobre a grande luta. Meus irmãos, eu e alguns colegas, seguíamos revivendo cada instante, descrevendo cada detalhe de como havíamos vencido o combate. Meu tio dava risadas juntamente com os acompanhantes de meus amigos e exageravam propositadamente, observando nossas reações.

Chegamos em casa e encontramos nossos pais, avó e uma comadre de meus pais, também eufóricos, sorridentes. Na cama, ao lado de minha mãe o mais novo membro da família. Que não nascera no conforto daquele quarto como programado por eles e sim longe de casa, mas essa é uma outra história... qualquer dia eu conto. O que eu quero agora é me deliciar com aquela vitória espetacular do Índio Brasileiro, o herói nacional.