Sobre Guirlandas, Ditongos e o Peru de Natal.
Remeto-me novamente à infância para entender, por meio da dinâmica das cirandas, a simbologia das guirlandas e a dinâmica das famílias. E sobre como sabemos quem somos quando o couro duro do sapato novo aperta nossos dedos, assim como nos aperta a saudade de quem não se sentará mais à mesa para o arroz com castanhas e o peru com laranja.
E não importa saber se as cadeiras serão suficientes para os agregados adquiridos ao longo do ano. Vizinhos desgarrados são bem-vindos. Amigos dos amigos também. A família cresce em progressão geométrica e a comida incha na panela que tem sempre o tamanho do coração de mãe.
Pendurada na parede oposta à entrada, uma guirlanda reina soberana. Folhas secas ornamentam a ciranda de vime retorcido que simboliza um abismo de múltiplos disfarces. Abismo disfarçado pelo consumismo que nos corrói o bolso, o corpo e a alma.
Compramos tudo, e em tudo há um pouco de nós. E por mais que não precisemos de nada, o papai-noel capenga que perambula pelo shopping à procura de criancinhas nos conduz ao mundo mágico do endividamento totalmente consciente. E os cartões que recebemos não trazem mais a caligrafia de quem se lembrou de nós um dia, porque chegam via e-mail.
Sentamo-nos para comer. Alguém se empertiga na ponta da mesa para nos fazer refletir sobre o ano que se passou. Trocamos olhares melancólicos. Saboreamos o aroma do peru agigantado por aditivos químicos e a saliva se encantoa em um nicho da boca enviesada em um sorriso de satisfação.
Estamos juntos então. Como vogais de um ditongo, inseparáveis pela regra máxima. Juramos que os próximos doze meses serão diferentes. Nós não nos distanciaremos e não deixaremos de nos reunir em longos e calorosos almoços em família.
Subitamente, a guirlanda nos parece mais e mais como uma ciranda. Como uma roda viva que nos faz girar de mãos dadas ao som de nossa cantoria desafinada. Vamos todos cirandar por entre os anos que julgamos ter, mesmo sabendo que a saudade daquela cadeira a mais, vai arder e queimar e consumir até quase nos matar. Mas ainda sim vamos pagar pra ver.
Vamos pagar porque não acreditamos no fim. Não acreditamos que amanhã pode ser o último bom-dia que não foi dito por que estamos acostumados demais a não dizer nada a ninguém. Repelimos o passar do tempo com a falta de tudo o que podemos fazer agora.
O natal se transforma em redenção. Sorrisos e lágrimas misturam-se aos embrulhos desfeitos das surpresas que fazemos sem nos preocuparmos realmente se estamos agradando. Nós nos abraçamos e juramos mais uma vez.
Perderemos nossa cadeira fatalmente. E fatalmente assistiremos o esvair das juras que povoam de esperanças a noite mais esperada das crianças. E novamente guardaremos a guirlanda e fugiremos da ciranda diária porque nos recusamos a dar as mãos.
E assim seguiremos caminhando e acreditando que sempre haverá tempo e a família sempre estará lá, exatamente como na foto do natal passado em que sorrimos e nos abraçamos. Como na mesa de muitas cadeiras em que nos sentamos e conversamos. Como ditongos em frases inteiras.
Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Vamos assar um grande peru e dele nos fartar. E quando a noite chegar, embrulhos vamos rasgar. E quando o ano virar, nenhum de nós vai se lembrar da família que somos e do quanto podemos nos doar.
Vamos todos cirandar?