Insolação

Sol desgraçado que me enfraquece. Sou planta da/na solidão, mas de uma espécie que necessita de escuridão pra fazer fotossíntese. Meu ATP é oriundo da misantropia. Ando por essas calçadas apinhadas de mulheres (gafanhotos) que param em vitrines (plantações), amaldiçoando meus calcanhares em carne viva, amaldiçoando minha panturrilha retesada e amaldiçoando as maldições que saem aos borbotões de minha sinestesia com os gemidos mudos dos mendigos mais miseráveis de cada beco imundo do mundo. Tenho de andar de olhos cerrados, senão o sol me cega. Tenho que puxar uma perna deixando o peso na outra, e repetir o processo com a outra, e sentindo cada vez mais dor em cada uma delas. A ponta da rua ainda está longe. Devo alcançá-la antes de desmaiar. Se eu desmaiar, terei de dar satisfações. Se eu desmaiar, poderão me mandar embora. Forço-me andar, com meus pensamentos me estagnando nalgum lugar do tempo a que não mais pertenço. Ando, com o coração sem fibras pra aguentar outro desamor. Ando, perdendo um tempo que não me pertence; um tempo que assinei contratos vendendo-o. O céu azul me observa todos os dias, nas mesmas horas, fazendo as mesmas coisas, fazendo tudo; tendo uma vida mais repetitiva do que a dele próprio - ficar lá em cima, observando os mesmos erros das mesmas pessoas. É meio-dia e não há sombras, meus antebrços queimam e um filete de suor escorre peito abaixo, e minhas bolas batem nas coxas, livres na gaiola de uma samba-canção negra. E as costas de minhas mãos passeiam pelos geiseres de minha testa fria nessa subida tórrida a caminho do nada. Com a sarjeta se aproximando, com as pedras portuguesas se aprumando nas minhas bochechas, quentes nos meus braços, quentes nas minhas pernas; força da gravidade vindo da direita, com o céu na minhas costas e sapatos que vão, ou hesitam e vão, ou param e ficam, estagnados, no meu horizonte de desfalecido, quase sendo pisado, pronto pra ser roubado ou carregado, sendo molestado por (mais) um mal que desconheço. Estico as pontas dos dedos e as cortinas se fecham.

30/11/2011 - 12h42m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 30/11/2011
Reeditado em 30/11/2011
Código do texto: T3364896
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