Quando a justiça é cega
Quando a justiça é cega
Se voltamos as páginas do passado, iremos encontrar escondidos muitos erros da justiça, sufocados pelo esquecimento e indiferença do povo. Mas alguns, com certeza devem ter prevalecido, nem que tenha sido por um breve espaço de tempo, no remorso que acredito, deve existir no coração de todos os homens. Conta a história, que nos meados do século IX, mais precisamente na região dos Campos dos Goytacazes, um respeitado fazendeiro foi acusado injustamente de ter cometido uma chacina, crime pelo qual foi julgado e condenado como culpado, morrendo na forca no dia 06-03-1855, na cidade de Macaé. Dizem que, no cadafalso, a Fera de Macabu, como foi apelidado, jurou inocência e jogou uma maldição na cidade, cem anos de atraso no tempo. Ele foi enforcado e pouco depois foi esclarecida a sua inocência, fora vítima de uma trama envolvendo interesses políticos e financeiros, o que encheu a cidade de remorso, medos e incertezas, tanto é assim que a maldição se cumpriu. Por causa desse engano da justiça, a pena de morte foi abolida no Brasil, pelo então Imperador, D.Pedro I. Isso ainda deve acontecer todos os dias, muitos inocentes vão parar nas cadeias espalhadas por esse país, mas ao menos estão livres de perderem a vida como pena. Perdem às vezes, só o sentido dela. Com exceção do ex-mecânico, Marcos Mariano da Silva, morto recentemente aos 63 anos de idade, após ter ficado 19 anos preso e inocente. Virou manchete ao ser reconhecido como o maior erro judiciário já ocorrido no Brasil. Eu não diria só isso. O erro não foi só do judiciário, foi um erro maior ainda de humanidade. Preso pela primeira vez, acusado de um crime que não cometeu, passou seis anos na cadeia esquecido, sem julgamento, abandonado pela família, esposa e seus onze filhos, que nunca mais o visitaram ou quiseram saber de sua vida, como se não conhecessem o homem simples e humilde que havia debaixo daquela acusação. Anos depois, o verdadeiro assassino confessa a culpa pelo crime e ele é libertado, para ser preso pouco depois por um policial que o reconheceu, sendo encarcerado novamente por um juiz que presumiu que ele fosse fugitivo da justiça. Mais uma vez jogado e esquecido numa cela, como um cachorro sem dono, de quem ninguém deu falta. Lá, pegou tuberculose, foi vítima de estilhaços de uma bomba de gás, atirada pela polícia durante uma rebelião e ficou cego. Foram mais 13 anos , esquecido pela justiça e pelos homens, sem nenhum julgamento. Ficou lá abandonado e adormecido no tempo, tal qual a consciência daqueles que o privaram de sua liberdade, a troco de nada. Alguém na certa acreditou nele e finalmente, reconheceram o erro cometido, devolvendo à sociedade uma caricatura daquele que foi um dia, agora um dependente da misericórdia dos outros para sobreviver. Entrou na justiça contra o Estado que arrebentou com a sua vida e muito tempo depois, alguma luz da justiça lhe deu ganho de causa, passou a receber uma pensão de mil reais, até que a indenização de dois milhões de reais estabelecida lhe fosse paga. Dinheiro nenhum desse mundo seria capaz de lhe devolver a alegria e a dignidade roubadas, mas dos males o menor, pelo menos teria fonte do seu sustento e da nova família que o acolheu. Recebeu a metade do dinheiro e mais uma vez mostrou o ser humano sensível e correto que era: distribuiu com os pais e ajudou a família humilde a ter um pouco de conforto no final da vida. Aguardava o restante do dinheiro como um pedido de desculpas dos homens que lhe tiraram a honra e o significado da vida. Na semana passada, a justiça negou por unanimidade o recurso do Estado e determinou o pagamento do restante da dívida. Ao ser comunicado da decisão da justiça, suspirou aliviado, como que agradecendo a Deus por, enfim, ser declarado inocente ao mundo, já que aos Seus olhos, ele sempre fora. Então entregou-se a Ele: havia terminado a sua luta para mostrar ao mundo o homem justo que era. Não proclamou maldições nem guardou ódio daqueles que o condenaram. Não cabia ódio naquele coração, ocupado tanto tempo pelo sofrimento. Mas no coração daqueles que lhe causaram tanta dor, espero que o remorso remoa por muito tempo. Não pelo erro da justiça, que é humana, e portanto, passível de erros. Mas pelo crime da indiferença e do desamor cometido com esse homem, que só tinha um pecado: era pobre.