Acarajé nos shoppings?


               Todo mundo gosta de acarajé
                                   Dorival Caymmi


     Com certeza não sou a pessoa indicada para escrever sobre o acarajé. Não nasci na Bahia. Sou lá do Ceará. 
     Fica-me melhor escrever sobre a tapioca cearense ou sobre o delicioso pastel do Leão do Sul, o da Praça do Ferreira.

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     Soube que pros lados da Aldeota existe uma filial do Leão do Sul, e que o seu dono cuidou de preservar o sabor inconfundível do pastel da matriz. Ainda bem.
     Não posso, entretanto, dizer se isso é verdade porque nunca abandonei o Leão do Sul da Praça mais querida de Fortaleza.
     Frequentei-o na minha mocidade, nos finais de tarde, envergado a gloriosa farda do Liceu do Ceará. 
     Dando, antes, uma passadinha na "esquina do pecado", cujo vento, de uma ousadia inacreditável, levantava a saia das meninas "incautas" que por lá desfilavam depois das aulas ou filando-as
     Aos que não a conheceram ou dela se esqueceram, recordo que a "esquina do pecado" era formada pelo encontro da Rua Guilherme Rocha com a rua Major Facundo. 
     O espetáculo acontecia, todos os dias, a partir das quatro da tarde, mais precisamente em frente ao cinema São Luis, de saudosa memória. 

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     Iniciei dizendo que não sou a pessoa indicada para escrever sobre o acarajé. Atrevo-me, entretanto, a fazê-lo porque na terra do Senhor do Bomfim já moro há mais de cinquenta anos.
     Portanto, minha intimidade com os tabuleiros de quitutes baianos tem mais de meio século. 

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     Ouvia falar no vatapá, no xinxim de galinha, no abará, no bobó e nas moquecas de peixe e camarão. 
     Escolhi, porém, o acarajé para entrar na fantástica cozinha da mitológica Bahia; e dela nunca mais saí. 

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     Minha primeira experiência com esse delicioso quitute do candomblé foi, no mínimo, traumatizante. E explico por quê.
     Deu-se num tabuleiro que ficava na entrada do Elevador Lacerda, disputadíssimo pelo pessoal da Cidade baixa, onde trabalhei durante anos.
     Eu tinha um pouco mais de uma semana de Bahia. Um engraçadinho me disse: "Peça um acarajé quente."
     De olho no bolinho de feijão fradinho que dançava mergulhado no dendê fervendo, segui o conselho do estranho.
     Após a primeira mordida, pedi ajuda ao bar mais próximo! Tinha a impressão de que vomitava fogo. Caí, então, na real: acarajé quente singinificava acarajé com muita pimenta. 
     O molho das baianas é diferente de todos os molhos que até aquele momento eu conhecera, nas minhas incursões gastronômicas. Inclusive os molhos do Ceará onde se come uma panelada com a malagueta dando um toque incomparável a esse indigesto prato nordestino.
     Fica, aqui, pois, a dica para o turista que com certeza vai se apaixonar pelo primeiro  acarajé que encontrar nas esquinas de Salvador. 

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     Eu disse nas esquinas de Salvador. Mas a realidade é outra. Vende-se, agora, acarajé nas delicatessens e nos shoppings!!!
     E o mais lamentável: vende-se acarajé alterando-lhe o recheio que, pela melhor tradição, deve ser de camarão seco, vatapá e uma saladinha de legume.
     A gente encontra acarajé com carne de sol e até com bacalhau. Pode uma coisa dessa?

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      A comercialização do bolinho sagrado nos shoppings e delicatessens gerou um apimentado protesto das legítimas baianas do acarajé.
     Dia desses, elas festejam o seu dia, nacionalmente reconhecido, desfilando com seus colares de contas pelas ruas do Pelourinho. Belíssimo!.

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     Estou com elas e não abro.
     Vender acarajé fora dos tabuleiros é rasgar um dos mais belos cartões-postais da capital soteropolitana. 
     E diria mais: é um insulto aos Orixás que, no seu cardápio, incluem esse  bolinho. Xangô, Oxum e Iansã, por exemplo.  

      

     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 27/11/2011
Reeditado em 12/02/2021
Código do texto: T3359201
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