Formalidades ou Idades do Formol

Sabemos que precisamos dar valor ao que é simples. Mas simplesmente não o fazemos.

Era uma menina lerda, molenga até no falar, parecia abobalhada. Pobre e negra, para variar, com um quelóide que lhe havia tomado praticamente toda a orelha por conta de uma inflamação no buraco do brinco. Vivia com um cara que às vezes a agredia. Sobretudo depois que curtia um baseado à noite, após chegar do trabalho.

Um dia apareceu grávida.

- Você fez pré-natal?

- Ah..., eu... não. Não tenho... plano... de saúde, aquele jeito mole, arrastado de falar.

- Já fez um enxovalzinho pro bebê?

Não tinha feito qualquer tipo de exame. Não tinha enxoval. Aceitaria qualquer tipo de fralda descartável. A barriga crescia desmesuradamente. Cada dia maior. Mais lisinha. Foi de van para o hospital no dia do parto. O médico ainda levou uns vinte minutos para atendê-la.

Voltou no dia seguinte. Também de van. A mesma van destrambelhada, saltando pelos buracos e quebra-molas de Maricá. Mas o bebê era lindo. Completamente normal, robusto, sem qualquer problema. Sem qualquer traço característico de subnutrição ou enfermidade congênita.

Dois dias depois, já estava na esquina mostrando o garotinho para todo mundo.

- Pega... ele, sim. Vê... como é...pesadinho.

E todo mundo ficava maravilhado.

Na cerimônia de premiação dos classificados no concurso de literatura algumas pessoas na platéia também seriam homenageadas. Uma delas possuía uma lista de títulos e obras que não acabava mais. Todas as outras também tinham suas variadas distinções. O organizador do certame, que fazia as apresentações, ele também se incluía no rol dos intitulados, tendo a seu favor o fato de ser o presidente da associação literária que promovia o concurso. Era clara a satisfação com que o organizador apontava as distinções da cada um dos presentes.

Era possível que todas aquelas titulações acabassem se tornando mais importantes que os trabalhos a que correspondiam. Enchendo de orgulho os seus titulares. Uma massagem em seus egos, ainda que de leve, ou não.

As formalidades caminham na direção oposta do que é simples. Todos ali naquela sala sabiam que poderiam ter sido igualmente premiados autores que fossem encontrados em favelas, morando na rua ou trabalhando num supermercado, desde que tivessem eles a chance de se inscrever no concurso.

E como é que aquela moça, sem qualquer preparo ou melhores condições de higiene e saúde podia ter concebido um bebê como aquele?

Há milhares de exemplos como esses. Mas nunca serão suficientes para chamar a nossa atenção para coisas que vivemos "dizendo" que são importantes, mas que na verdade não nos importam tanto.

Há autores com mais de 50 livros publicados. Há outros que escreveram apenas uma obra e ela se tornou “o primeiro romance urbano brasileiro”.

A Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, é considerada um marco da cultura nacional. Pelo rompimento com atitudes até então consagradas na arte e na literatura. Nomes da maior expressividade da nossa literatura, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros, estão a ela intrinsecamente ligados. No entanto, Lima Barreto já havia dado exemplos de mudança de rumo na literatura antes da Semana de Arte Moderna. Só que Lima Barreto, que era negro, era tido ainda como bêbado e louco. Sem condições, assim, de ser enquadrado em qualquer tipo de formalidade. No entanto, sua obra "O Triste Fim de Policarpo Quaresma" continua merecendo toda sorte de estudos literários. Sendo inegável a sua importância no contexto literário brasileiro.

Parece que alguma coisa – seria o imponderável? – sempre fica brincando com a gente. E quando tudo parece certinho, perfeitamente enquadrado dentro do previsível, o inesperado se reveste de um sucesso que surge exatamente de onde jamais poderíamos supor que ele pudesse se concretizar.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 27/11/2011
Reeditado em 27/11/2011
Código do texto: T3359192
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