Postergância
Grandes supermercados são demasiado trabalhosos de se visitar aos finais de semana, principalmente próximo a datas festivas. Trânsito interno congestiona geralmente, muita gente abastada entupindo seus carrinhos GG, sem necessidade de fazer anotação ou trazer lista, preocupação apropriada mais a assalariados, mormente o assalariado “mais baixo na escala de trabalho”, como manifesto no discurso casoyístico de boris jornalista, ao expor, assoberbando-se na clareza de sua turva consciência, a ideologia classista elitista que o impregna, repreendendo os garis que ousaram felicitar sua própria espécie (humana!), em final de ano.
Como sei que assim o é nos estabelecimentos da cidade onde moro, sigo atenciosa pelos corredores para evitar atropelamentos, empurrando pacientemente meu carinho PP. Um neto e a avó caminham entre as prateleiras do supermercado numa parceria tão simétrica quanto à assimetria entre suas gerações. O garoto meigo e vivaz, transporando desejos mirins, orçamenta e avalia junto com a avó as possibilidades: “olha, vó, esse chocolate tá barato, são cinco reais”, informa salivando e com os olhos agitados, comuns a meninos de sua fase. Serena, ela concorda, avaliando afetivamente a embalagem, como se acarinhasse por extensão o desejo do neto: “é mesmo, meu filho, tá mais barato que aquele ovo de páscoa que a gente viu no outro supermercado”. Exalando uma suave ternura nos gestos e na aparência idosa, a afável senhora olha e reolha a apetitosa barra de chocolate, acariciando-a com a palma da mão bem aberta, permitindo-me prever a gostosura sendo lançada na pequena cesta, que o garoto segurava como gentil cavalheiro de sua dama nona.
Dirigi-me à seção de higiene, seguindo após para os enlatados. Na seção de frutas avisto novamente, a certa distância, o casal meticuloso. O menino agora admira uma roliça e brilhante maça verde, a avó o acompanha parceira. Em sua cesta, alguns itens já definidos. Sigo para a seção de biscoitos, depois à de congelados, e reencontro-os, desta vez, na seção de iogurtes. O garoto apenas olha indulgente para a avó e para as bebidas lácteas, desta vez sem nem ao menos tocá-las. Ela o acompanha na atitude. Disperso-me, ainda, pela adega, admirando algumas garrafas de vinhos, perguntando-me por que me são deliciosos aos olhos mas repulsivos ao paladar, se considerados bebidas finas de reis e rainhas história afora, concluindo, então, ser porque não tenho nem nunca terei o tal sangue azul.
Após esse devaneio, sigo ao caixa menos lotado, cruzo os braços para não os cansar dependurados à toa, pois a demora até chegar minha vez não seria pouca. Novamente, o casal familiar me atrai a atenção, já no caixa ao lado. O menino estende a cesta no balcão e vai cuidadosamente mostrando os itens à balconista para registrá-los. Sem o que fazer, para distrair-me, acompanho a sequência das mercadorias: dois quilos de arroz, um de feijão, dois pacotes de leite de duzentos gramas cada, um quilo de farinha, quatro batatas, três cebolas, um pimentão, meia dúzia de bananas, uma pequena cuba de ovos, mas, ei!, tá faltando algo! Espicho o pescoço, procuro o chocolate, a maçã, e, não os vendo, nem penso mais no iogurte.
A avó contou as notas todas que possuía, chegando a cinquenta reais, pagou a conta e recebeu o troco, do qual provavelmente ainda pagaria o ônibus de volta pra casa, muita falta o troco faria se ela tivesse sucumbido ao amor de avó, que não recusa um justo mimo ao neto. Mas ela só pôde manifestá-lo através de expressiva ternura a ele dispensada, deixando-o saborear ao menos com os olhos o que a precariedade financeira não permitiria usufruir, afora ter suportado com elegância a dor de espírito que certamente soube camuflar por não poder satisfazer a carência de outras doçuras do menino. E ele, cúmplice, sabia que a ausência, aquela que tanto me incomodou, seriam itens de luxo para uma criança que tinha que aprender já tão cedo a subjugar e a postergar a satisfação de seus desejos mais triviais.