Em honra aos meus filhos

O que acontece? Desculpe minha indecisão. Não sei se penso para escrever ou, o contrário, se escrevo para pensar. Sei, contudo, que escrevo e penso - também o inverso. Invoco imagens, sensações e sentimentos que se escondem em quartos diferentes da memória e a cada lembrança são pintadas paisagens infantis. O que me faz pensar e escrever com uma ponta de filosofia: toda lembrança é uma confissão de envelhecer. E recordo Heráclito, filósofo bucólico, que afirmava não poder entrar duas vezes no mesmo rio, e, ainda, uma frase escrita nos relógios antigos de carrilhão em gráficos manuscritos - tempus fugit (o tempo foge). Em nome do imperdoável tempo, o autor sagrado escreve:

"Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu.

Tempo de nascer e tempo de morrer;

tempo de plantar e tempo de colher;

tempo de chorar e tempo de sorrir;

tempo de gemer e tempo de dançar..."

(Ecle 3,1-8)

Até parece que os ponteiros da vida rodam ao contrário vivendo numa contagem regressiva, e os diários se tornam obtuários com rubricas para celebrações de saudades: "amor-ausente".

É essa a imagem que tenho das festas de aniversário, onde ainda se apagam velas. No meu ûltimo aniversário não apaguei. Não houve velas. Penso... Como é celebrar a vida - o nascimento - apagando velas? Que sentido tem? E nisso importa o sentido, sim.

Eis o ritual:

Celebração noturna. Estando todos os convidados e o aniversariante reunidos em torno de um bolo, apagam-se as luzes e acende a vela. Segue o canto "Parabéns pra você" ritimado com palmas. Ao término do canto aplaude-se o aniversariante e este, depois de fazer um breve pedido mentalmente, assopra a vela apagando-a.

A liturgia é sempre a mesma, mas neste ritual não se celebra a vida, pelo contrário, celebra-se a morte. Os símbolos nos dizem. O ritual incomoda. Como pode se alegrar apagando velas em sinal de mais um ano de vida? Nascer é ser dado à luz e não retirado. Não, não é um ano de vida, engano-me, mas mais um ano de morte. Daí que é contra as regras de etiqueta perguntar a idade a outra pessoa. Já ouvi falar nisso, mas nunca havia entendido. A idade não revela a vida que tenho hoje, mas os anos que se passaram. E se passaram, passou... é rio que não se pode entrar duas vezes. São paisagens infantis que se guardam na memória. Lembrar é ressuscitar o que morreu, é acordar o que dormiu.

Persisto. Não há celebração da vida no apagar a vela. Os símbolos confirmam: luz e calor invocam ("in" - "vocare": chamar para dentro), a vida; escuridão e frio, a morte. Recordar é viver; lembro, logo existo. Enquanto existir recordações em mim, estarei seguro de minha vida, se me faltarem é que já morri; mas se uma pessoa sequer, num espaço ínfimo de tempo, lembrar de mim não estarei morto. Ressuscito naquele pensamento, naquela lembrança. Nisto consiste a eterna idade. Elixir da juventude (morram de inveja os alquimistas: encontrei-o).

Lembrei de um fato que há muito me tinha escondido quarto à dentro, o momento de iluminação me veio quando passei em frente a uma escola de ensino fundamental. Eu era criança. Tinha conseguido carona na garupa da bicicleta do Demócrito, meu amigo, até à escola. Cheguei cedo e tive que esperar tocar a sirene e o porteiro abrir o portão. Enquanto isso, conversava distraído. Sem perceber, pelas minhas costas, sorrateiramente, como uma serpente prestes a dar o bote, se aproximava um colega de sala de aula com dois ovos escondidos em suas mãos. Quando ele se aproximou... Plach! Plach! Levei um susto! Ele havia quebrado os ovos crus na minha cabeça.

Quer saber o sentido disso?

Não há sentido algum, e cito Alberto Caeiro, o outro de Fernando Pessoa:

"Não basta abrir a janela

para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há idéias apenas".

Para mim, naquele momento, aquilo era apenas dois ovos quebrados na minha cabeça. Nada mais. Tive vergonha. Cabeça não é lugar para se quebrar ovos. Aproveitei a mesma carona para a escola, e, na garupa da bicicleta do meu amigo, voltei para casa.

Sugiro, então, a vós, liturgistas, que reescrevam uma nova celebração da vida sem apagar velas e que invoque a esperança de uma eternidade tranqüila. Dou uma opinião e espero, mesmo sem a vossa aprovação, usá-la em honra aos meus filhos.

Imagino uma celebração da vida com elementos que simbolizam a vida como a água, pela qual nascemos, e uma árvore. Acho bonita as árvores que, em si, já trazem algo de maravilhoso, além de sua beleza. O fato de nascer de uma semente e se desenvolver no ventre/seio da terra. Como ela cresce buscando o céu... e depois de uma certa idade, faz amor com a terra, engravida, floresce e (para algumas) frutifica. Esperança...

Eis o ritual:

Para nascimentos:

Celebração diurna. Em torno de uma pequena cova, preparada com antecedência, permanecem os convidados e os pais que trazem consigo uma muda de árvore de suas preferências. Os pais regam a cova e plantam a árvorezinha. Uma breve oração é proferida, explicando que aquela árvore será o símbolo da presença de um novo ser humano. Todos aplaudem o gesto. Segue a ceia.

Para aniversários:

Celebração diurna. Em torno da árvore permanecem os convidados e o aniversariante. O mestre de cerimônia (que pode se os pais ou um amigo) introduz a cerimônia com uma breve oração. O aniversariante rega sua árvore-símbolo. É ele quem vai cuidar dela como cuidará de sua vida. Todos aplaudem o gesto e cantam o "Parabéns pra você". Segue a ceia.

Que hajam árvores frondosas em honra à vida, e não velas apagadas.

E, quanto ao tempo, evoco S. Agostinho nas suas "Confissões":

"Como é que se consome o futuro que ainda não existe? Ou ainda: como é que cresce o passado, que já não existe, a não ser pela existência dos três momentos no espírito que os realiza: expectativa, atenção e lembrança? Desse modo, aquilo que a alma espera torna-se lembrança depois de ser objeto da atenção" (XI, 28, 37).

Agora sei que escrevo para pensar. Cada palavra que me sai faz com que eu medite seu significado, o que me faz lembrar que a sabedoria monástica diz que "a palavra exerce um influxo para o bem ou para o mal. Depois de pronunciada já não está no domínio de quem fala; servirá para edificar ou para destruir".

Walter Welington
Enviado por Walter Welington em 03/01/2007
Código do texto: T335644
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