Morrer só aos cem anos


     1. Morrer agora?
     Nestes últimos tempos tenho me feito, com muita frequência e indisfarçável desconforto, esta cruciante pergunta. E completo com mais esta indagação: ora bolas, por que não chegar aos cem anos?
     
2. Só conheci uma pessoa, minha parenta próxima, que viveu três séculos. Nasceu no ocaso de 1889; percorreu, serelepe, o século XX; e faleceu no alvorecer do século XXI.    Morreu serenamente; como morrem os passarinhos, quando não são abatidos por um caçador malvado.
     
3. Deixo, pois,  aqui, mais uma vez regristrada, minha inabalável vontade de não morrer antes de apagar as cem velinhas que, crepitantes, estarão iluminando um enorme bolo. Não importa que seja Diet ou Ligth; ou feito só de açúcar. Com cem anos, temer mais o quê?
     
4. Muitos estranham quando digo que invejo o nosso Matusalém. Embora sua longevidade e até sua existência sejam contestadas pelos que se preocupam em estudar sua história, ele permanece como o homem que curtiu a vida durante séculos e séculos. 
     
5. Ultimamente, têm morrido muitos colegas e amigos queridos; velhos companheiros de inefáveis patuscadas frequentando os mesmos bares os mesmos lupanares. 
Uns eu acompanhei, aplaudindo-os pelos sucessos alcançados vida afora. Outros, lamentando seus fracassos; suas angustias; suas dores de corno...  Com os mais chegados, cheguei a dividir minhas saudades e frustrações.
     
6. Abro os obituários e vejo os que estão indo convidando pros seus sepultamentos, através de nota assinada por seus parentes, abatidos e em pranto.
Como não vou a velórios, faço uma oração pelo amigo morto, dizendo-lhe o que aprendi no seminário seráfico: Requiescant in pace!.
     
7. Semana passada, abri a gazeta e me deparei com a notícia da morte de um bom amigo do tempo dos lupanares.    Imediatamente me lembrei das jovens e ardilosas prostitutas com as quais nos divertíamos, noite adentro, ao som de um bolero de Gatica ou de um samba-canção do Adelino. 
     
8. Ele era um frequentador assíduo dos bordeis de Salvador, na época povoados por mulheres atiradas, verdadeiras "mestras" na arte de "amar" e pecar...
Ele chegava às dez da noite e só se despedia da boemia por volta das quatro da madrugada, sempre fumando o seu Hollywood, depois de reforçadas doses de Campari ou Cuba-libre de Rom Merino.
     
9. Numa mesa qualquer, rodeado de mulheres, ele me aguardava. Sabia que eu só "assinava o ponto" depois da meia noite, quando era liberado pelo jornal em que trabalhava, como copidesque.  Morreu com  a minha idade. 
     
10. Sabendo-o, agora, hóspede do Jardim da Saudade, voltei ao Diário da Noite Iluminada, do Mestre Josué Montello.  Ali escreveu o autor de Um rosto de menina, em dezembro de 1980:  "Faleceu Nelson Rodrigues, certamente a mais importante figura do teatro brasileiro, depois de Artur Azevedo. Em julho, morreu Vinicius de Moraes. E outubro, Otávio de Farias.  E Joel Silveira comenta: - A morte está ceifando agora a minha geração. Vou mudar de penteado, para ver se ela não me reconhece."
     
11. A morte só reconheceu Josué Montello quando o autor do Diário do Entardecer chegou aos 89 anos; e Joel Silveira, belo escritor, sergipano de Lagarto, no dia 15 de agosto de 2007, com 89, também.
     
12.  Pois é. Seguindo o conselho de Montello, vou mudar meu penteado para ver se assim chego ao tão desejado cem anos de idade. Quem sabe?
       
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 24/11/2011
Reeditado em 06/11/2019
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