Strogonoff
De carne. Baseado em uma passagem de vida verdadeira. O moral do relato a seguir é que alguns preconceitos nos fazem perder muitas coisas boas na vida. Achei que, mesmo sendo algo particular, essa história não poderia deixar de fazer parte do meu acervo recantista.
Inverno de 1991. Itatiaia – RJ, lugar no Brasil de clima europeu, lindo, um ar esbranquiçado e puro, belíssimas e geladas cachoeiras, matas com um tipo de verde diferente – o que sería um verde diferente? - Chalés de madeira convidativos ao nobre pecado da preguiça, um lugar mágico na rota que dá no Pico das Agulhas Negras, onde se ouve o som da natureza sem desafinamento, e o bailar harmônico das flores toda vez que uma leve brisa se põe a roubar beijos dissolutamente. Neste espetáculo de lugar funcionava um camping (administrado pela empresa Camping Clube do Brasil) da qual meu pai fazia parte do quadro de funcionários, sendo membro do grupo de chefia. Um evento que ocorria todo inverno no lugar reunia pessoas de todo canto do Brasil, era a “Noite de Queijos e Vinhos”, festa clássica regada a muito vinho, claro, queijos dos mais variados tipos, e para os mais variados gostos, uma série de patês, e música tipicamente italiana – bom, sempre achei que a música deveria ser tipicamente suíça, mas meu gosto era indiferente pros outros aos 15 pra 16 anos. Os organizadores do evento, que acontecia de sábado para domingo, reuniam-se sempre em um pequeno chalé para debater assuntos da festa, bem como seus familiares (aí que eu entro). Pra eles o evento começava na sexta-feira e acabava somente no final do domingo, já que eram da organização. Nesta mesma reunião havia o rancho, café da manhã, almoço, lanche e janta. Panelões do tipo comunitário para os mais diversos cardápios.
Então... foi num...
Sábado, hora do almoço, eu já havia explorado bem cedo as belezas do lugar e estava morto de fome. Corri pro rancho - era a única opção de lugar pra almoçar que havia - e pra minha surpresa desagradável e triste o cardápio era Strogonoff de carne, com todas as especiarias culinárias que um bom Strogonoff deve ter. Ocorre que eu não suportava Strogonoff. Nunca havia provado, mas não gostava. Aquele “troço” tinha uma aparência estranha, um nome estranho, uma cor estranha, as coisas dentro dele boiando na mais perfeita promiscuidade alimentícia eram estranhas, a fumaça exalava um cheiro estranho, e ele deixava tudo onde ele encostava com a mesma aparência desagradável, na ocasião batatinhas palha crocantes, arroz, pratos, garfos, facas e palitos de dente. Não! Eu não podia acreditar! Estava morto de fome e não gostava do cardápio do dia, Strogonoff. Estava tonto e vesgo vendo todas as pessoas felizes a se servir, elas salivavam, eu percebia emoção em suas faces, até brigavam por chegar primeiro na panela gigante, elas repetiam de prato, as vezes por mais de três vezes. Eu, já passando muito mal, não sabia mais o que fazer. Nem pensar em ingerir aquela coisa esquisita, isso não, isso era o fim, melhor comer as plantas comestíveis que eu sabia que existia no lugar. Perguntavam-me, já que não viam pratos em minha mão e muito menos na fila para chegar até a panelona:
- Não vai almoçar?
- Estou sem fome!
- Mas coma um pouquinho... a festa só começa meia noite.
- Mas ainda tem o lanche, e estou sem fome...
- Tem certeza? É Strogonoff de carne...
Não, eu não comeria aquilo, era muito feio, nunca houvera provado, mas “sabia” que era muito ruim, pois algo com uma aparência tão esquisita só poderia ter um gosto igualmente esquisito. Nem pensar!
Só que, - mas... poréns... entretantos... que geralmente servem mais para atrapalhar a humanidade, esta vez vinha a favor - a fome apertou de mais, e não pude agüentar, havia explorado muitas cachoeiras e cavernas e isso dava muita fome, precisei criar coragem, muita coragem aliás, respirar fundo fechar os olhos e enfrentar. Eu precisava comer, já estava ficando com dor de cabeça e com a pressão caindo, meu estômago estava colando nas costas, meus olhos já estavam fundos, e quanto mais fome tinha, com mais coragem ficava. Resolvi enfrentar. Me dirigi até a super panela, onde ainda havia pessoas disputando espaço, abri a super tampona, peguei a super concha que já estava com um super aspecto estranho, estava suja de Strogonoff de carne (por que não uma feijoada?), coloquei bem pouquinho na concha, em tentativas baldadas de separar as carnes do caldo, o que não resolvia muito, pois meu caso era com a aparência daquilo, e a carne tinha a cor daquilo, pois estava banhada naquilo, coloquei um pouco no prato fundo – não se come Strogonoff em pratos rasos pra piorar - e coloquei muito, mas muito arroz e batatinhas palha. O arroz e a batata rapidamente ficaram com a mesma aparência estranha, além de, no prato, parecer que brigavam por se misturar com o tantinho de Strogonoff que eu havia colocado. Agora bastava criar coragem de dar a primeira garfada, o que foi outro suplicio. Preparei um copo de coca-cola, caso o pior acontecesse, acabei com três copos de coca-cola antes de, enfim, (música de suspense!) conseguir dar a tão indesejada primeira garfada em um prato de Strogonoff de carne em minha vida.
Costumo dizer aos íntimos que minha vida é separada pelo antes de depois desse momento.
Minha vida mudou!
Como eu perdera tanto tempo rejeitando um prato com um sabor tão especial? Garfadas ligeiras de imenso prazer, começava então a me aliar aos desesperados na fila da repetição do strogonoff de carne (imaginar a cena deixa mais legal, por causa do "empurra empurra") Àquela altura, eu queria ser a concha. As pessoas na minha frente na fila da repetição eram minhas inimigas mortais, elas queriam acabar com tudo. Cada um que enchia uma concha e colocava em seu prato com aquela expressão de felicidade da conquista que eu jamais esquecerei, me fazia trincar os dentes de nervoso e receio que acabasse da panela. Achei que a panela não era grande o suficiente para aquele monte de gente. EU QUERIA MAIS! Ao chegar minha vez na repetição, achei que meu prato não era fundo o suficiente para a quantidade de Strogonoff que eu queria pegar. Eu estava alucinado.
Repeti por quatro vezes. O mundo se tornara mais colorido daquele momento pra frente e meus dias mais felizes. Na festa, nem ligava para os queijos, e só pensava no strogonoff de carne, e quando seria a próxima vez que poderia apreciar essa delícia gastronômica. Strogonoff de carne ocupou o lugar número um em relação aos meus pratos prediletos, que até então era lasanha. E a lição que aprendi...
Jamais julgar algo pela aparência sem antes conhecer seu conteúdo.
Domingo, hora do rancho, eu fui o primeiro da fila do almoço.
Cardápio do dia...
Ahhh...
Feijoada!