Gomer Pyle
“Nascido para matar”, de Stanley Kubrick, é um de meus filmes preferidos – diria eu até que é seu melhor trabalho dentre uma filmografia de verdadeiras pérolas. Não que eu me interesse pela Guerra do Vietnã, história americana e afins; é tão somente porque o acho engraçado, de um jeito mórbido, tal como quase tudo de que gosto. O sargento Hartman e o recruta Gomer Pyle fazem com que o filme brilhe, mas o que quero passar aos leitores deste texto, infelizmente, não é uma análise detalhada deste maravilhoso filme, e sim dar minha opinião de que um dos motivos pelos quais este filme é tão apreciado é porque todos nós conhecemos um Gomer Pyle em algum ponto de nossas vidas – ou, na pior das hipóteses, fomos nós o Gomer Pyle.
Ao decorrer de minha vida, eu mesmo conheci dois: um nos tempos do Liceu, e o outro na faculdade de Direito. Vamos chamá-los, respectivamente, de Pyle I e Pyle II. Era o ano de 2010 quando conheci o Pyle I, cujo verdadeiro nome era L…; fisicamente, era até bastante parecido com o grande Vincent D’Onofrio. Ríamos dele por ser inepto em praticamente tudo, e por sua obsessão por bandas de rock – todo dia o víamos com OZZY ou GUNS rabiscado com canetinha em seus punhos. Em verdade, em todo dia de prova ele nos incomodava para que lhe passássemos cola, e por isso acabou sendo alvo de duas de nossas piores pegadinhas.
Na primeira, era exatamente um destes dias de prova, e como de praxe tudo estava combinado sobre quem passaria cola a quem. Um dos meus colegas tinha uma borracha do tamanho de um bloco de post-its; escrevemos as respostas na borracha e a passamos de mão em mão. Por nos ter irritado muito, deixamos o Pyle I por último, e não só isso como apagamos as respostas da borracha quando a entregamos a ele.
A segunda pegadinha, muito mais brutal e que ainda hoje me é inesquecível, só comprova como o Ensino Médio pode destruir a psique de uma pessoa. Esvaziamos a mochila do pobre-diabo e escondemos seus pertences um em cada canto da sala de aula; alguns de nós sabíamos como arrombar a porta da cantina, e não era raro que furtássemos sei lá quantos pacotes de biscoitos de marca duvidosa a nosso bel-prazer. Assim sendo, trouxemos acho que uns dez pacotes de biscoitos (talvez até mais) e os esvaziamos dentro da mochila do Pyle I… e, não satisfeitos, ainda pisoteamos em cima. Ante a surpresa desagradável que veio a encontrar, só podia se lamentar sobre como o interior de sua bolsa estava “fedendo a morango”.
Para a nossa grande decepção, ele repetiu de ano, e em 2011 não fomos tão felizes às custas da infelicidade alheia.
O Pyle II (que se chamava F…) não sofreu tão cruelmente nas nossas mãos; já éramos adultos e alegres universitários naquele tempo. Tão incompetente em tudo quanto o Pyle I, a ele dedicávamos as mais elaboradas anedotas verbais – mas também ficávamos igualmente aflitos porque era tão bronco que não compreendia que queríamos zombar dele. Poderia preencher no mínimo 20 páginas contando sobre sua incompetência em todas as aulas nos três anos que ele esteve conosco, mas preferiria empregar meus talentos descrevendo minhas lindas colegas de turma (quem sabe, em alguma outra ocasião…) e tão somente um caso já basta.
Um de nossos professores nos dera um trabalho que só devia ser entregue dali a dois meses. Eu mesmo, preso naquele curso a contragosto, o terminei com muita antecedência ao cabo de dois finais de semana. Quando chegou o dia da entrega, encontramos o Pyle II na biblioteca, FAZENDO o trabalho. Muito provavelmente, não conseguiu terminá-lo também. Depois de três anos de curso, ele foi embora, e digo que o vi deveras recentemente.
Para encerrar meu relato com uma lição de vida, digo que bullying é sempre errado, ainda mais se resulta em dor física; mas será que a vida, sem um Gomer Pyle, seria mais tolerável – e divertida?
(São Carlos, 19 de julho de 2023)