Tango - Parte XII - Alucinação

Kol Nidrei.

Nicolai fazia seu violoncelo dizer frases cada vez mais melancólicas. E as frases desciam pela escadaria do prédio, inundavam a rua, e por instantes, parecia que a música da traição dos votos, eliminava a dor do mundo. Eliminava a dor do coração de Heitor.

De repente, a frase foi interrompida pelos olhos castanhos de Heitor que viam novamente a luz, mesmo sem saber se aquilo era real ou imaginário. Se aquele era o mundo, ou se era o inferno. E Nicolai deixou seu arco de lado, enquanto seu amigo despertava....

Heitor, a sombra do homem que foi um dia, com seu fiapo de voz quase morrente, perguntou:

-O que Alice fazia aqui?

Esperando pela pergunta, Nicolai tocou a mão de seu amigo e falou:

-Você sonhou, meu irmão. Você falou a noite toda nela. Acho que está ficando um pouco obcecado. Afinal, o que havia entre vocês?

Com vergonha de ter sucumbido a mais uma alucinação, Heitor fez o que não fazia desde muito tempo: chorou. E seu desespero era imenso. Imenso como sua culpa. Imenso como a desgraça de estar só. Não havia mais esperança. Heitor sentia que estava ficando louco. Sentia que o preço por não ser quem era, era muito maior do que havia imaginado. E sem poder revelar muito de seu passado, sentiu que aquele era o momento para dizer ao seu amigo Nicolai o que de fato sentia...

-Meu amigo, tenho de te confessar várias coisas....

-O que foi, meu irmão????

-Acho que amava Alice...

Um olhar de espanto no rosto de Nicolai.....

-Como assim...amava?

-Sim, eu amava aquela mulher...e sentia nojo, ódio, repulsa...mas ela era tudo aquilo que nunca consegui ser. Livre. Eu sabia que ela se drogava, sabia de seus desvios de moral, e sabia de cada pedaço sujo da vida dela...Mas mesmo assim eu a persegui. E aqueles olhos....Nada que conheci era mais sedutor do que aqueles olhos...pareciam ter sido arrancados de uma pintura de Botticelli....

E ao falar isso, uma ponta de um sorriso brotou na boca ressecada de Heitor.....

Nicolai observava atentamente os olhos daquele homem. Parecia que alguma verdade sairia dalí...Parecia que conheceria além de um perfume Dior, de um terno escuro, e de um violino que assim como seu mestre, também mentia.

-A minha mulher e meu filho, foram levados do mundo por culpa minha e por culpa de Alice. Eu deveria estar junto a eles quando foram assassinados. E acho mesmo que foi ela a mandante do crime. Eu preciso acreditar que foi ela....

-Eu entendo meu amigo. Mas não precisa falar nada, se for te fazer mal. Eu sou seu amigo. E não preciso entrar tão fundo em sua vida para gostar de você.....

Ao longe, o sol se punha, pintando o céu de laranjas e azuis, como um aquarela desordenado e randômico.E Heitor tinha refletido em seu rosto a luz decomposta pela vidraça. E tomado de uma coragem que nunca teve na vida, resolveu enfim revelar um de seus segredos a Nicolai.

-Meu irmão, acho que só me resta você no mundo.E por isso, não pode haver mentiras entre nós.

-Entendo.....

-Pois bem...você irá me achar sujo, mentiroso...mas o fato é que eu sinto atração por homens também....

Nicolai se espantou com a maneira direta de Heitor....

-Pensei que fosse demorar mais tempo para em dizer isso....

Heitor se espantou. Como poderia aquele homem saber de seu segredo tão bem guardado?

-Eu tive um irmão também casado. O Tomás...Mas apesar de tudo, sempre soube das escapadas dele com outros homens...até que um dia ele me falou. Não condenei a ele por isso. Só ficava chateado por causa da minha cunhada que sofria terrivelmente. E ela o amava muito.E eu aprendi a identificar certos sinais nas pessoas que denunciam esse tipo de comportamento.

-Você deve estar me achando a pessoa mais imunda do mundo, não é...mas eu tinha de lhe dizer isso. Já tentei ser diferente. Até o dia em que Alice me levou na caverna...e não sei o que aconteceu, mas eu tive relações com um homem. E da maneira mais sórdida que você puder imaginar...

-Não se preocupe. Não vou julgar você por isso. Sei bem o que você passa. Já vivi isso com meu irmão. Ele sofria também...mas preferia manter a mentira. Você está sendo corajoso de me contar isso. E por isso te respeito ainda mais.

-eu nunca fui feliz....eu sempre tentei ser melhor, ser normal...mas essa maldita doença me transformou nisso que sou agora...uma aberração. Um derrotado....E que precisa de sua caridade para viver.Mesmo que eu não mereça...

-Você fala como se tivesse cometido um crime terrível...ser gay não é crime...

Quando ouviu a palavra crime, Heitor sentiu o peso do cadáver de Tomás sobre sua cabeça.

O momento era puramente feito de ironias óbvias: o irmão de sua vítima sendo seu melhor amigo, o Kol Nidrei tocado no violoncelo e pela primeira vez, o medo da morte que Heitor tanto desejou.....

Cansado, Heitor novamente dormiu. Sonhou novamente com todo tipo de imundície, e com a visão do corpo de seu filho no caixão lacrado no dia do funeral. A dor era insuportável. Acordou. Nicolai estava ao seu lado, com o copo de água e os remédios recomendados pelo médico.

Nicolai saiu do quarto para atender ao telefone. E Heitor decidiu que naquela noite, não tomaria nenhum remédio. Atirou-os pela janela, provavelmente deixando alguém muito bravo lá embaixo....Não quis falar de sua irresponsabilidade com Nicolai para não deixá-lo preocupado.

Dormiu em minutos, e acordou com a luz do sol em seu rosto. E Nicolai o observando fixamente, enquanto tocava seu violoncelo.

-Estava tocando “o Cisne” do carnaval dos animais de Saint-Saens. Essa música acalma....e parece que deu certo. Você não teve pesadelos hoje.....

-Sim...deu certo. Dormi um pouco melhor. Acho que posso até me levantar...

Nicolai franziu sua testa.

-Você não tomou os remédios, não é mesmo?

-Como você sabe?

-Ora meu amigo....meu irmão. Você sabe que eu te amo. Não pode ficar sem seus remédios...Não queira me deixar preocupado...tome seu remédio.

Havia algo de estranho .

Nicolai saiu do quarto, e voltou com uma bandeja e os remédios.

-Tome. O médico mandou você tomar. E quero que você melhore logo. Quero que volte a ser o grande violinista que aprendi a admirar. Você tem que seguir a prescrição do médico.

-Mas eu estou bem...consigo até me manter de pé. Consigo até tocar meu violino se quizer.

-Você não está facilitando as coisas. Tome logo essa porcaria.

Nicolai, o chefe de excursão, nunca havia falado daquela forma. O que estava acontecendo?

Heitor, intimamente sabia. Mas se recusava a acreditar.

Pronto para reagir à força a uma investida mais violenta de Nicolai, Heitor se deu conta que não estavam sozinhos no apartamento. Uma voz surgiu como um estrondo do corredor:

-Algúm problema, Nicolai?

Heitor conhecia aquela voz. Já ouvira antes. Se lembrou dela quando esteve com Alice pela primeira vez...era Otto, o fagotista.

Mas o que ele estaria fazendo ali? O que ligava Otto a Nicolai.

Não se sabe por que, as feras têm o dom de pressentir o perigo, e partir em retirada. E naquele momento, Heitor sentia que o inferno se abria sob seus pés.

Mas antes que visse algum demônio familiar, Heitor desmaiou. O soco de Otto acertou em cheio seu rosto.

Lá fora, a metrópole se preparava para um chuva, daquelas que irritam profundamente.

A escuridão reinou.

Nas sombras da mente de Heitor, havia apenas a luta. A terrível luta de dois corpos. Entrecortada pelo tango. O tango que fazia os corpo se torcerem até o limite do tolerável. O tango que levou Alice.