Puxa, Como é Bela a Vida

Estava pensando agora mesmo em agrupar fatos que têm marcado a minha vida. Horas de alegria e de tristeza, de vitórias e de derrotas, de canalha e quase santo. Seria interessante um resumo. Sempre achei que se deve registrar tudo aquilo que não se quer esquecer ou que seria gostoso lembrar algum dia. Embora nunca tenha tido um diário, admiro quem tem o hábito de registrar num livro as passagens memoráveis ou mesmo infelizes de sua vida. Saudosista? É, e aos 22. Ainda agora ouvia o bigodudo Bienvenido Granda. Estive em Belém, com meus pais e irmã, quando tinha 10 ou 12 anos e, na casa de meus tios, onde fiquei, minhas primas possuíam alguns discos dele. É engraçado como ainda aceito essa música: depois de tanto tempo, o mesmo prazer. A certeza de saber que é um disco velho, a alegria em reconhecer que ainda gosto dele tanto quanto antes.

E assim são minhas lembranças. Vou agrupá-las algum dia. Não hoje, porém. Sei que elas se inserem em um contexto social, sendo conseqüências dele ou da coincidência que o Scavarda, meu professor de Inglês no IBEU, tanto quis que eu aceitasse. Mesmo assim pretendo lembrar-me delas algum dia. Será mais fácil se estiverem registradas.

Por agora me interessa apenas a vontade de viver ou de não viver. Esta, porém, bem mais fraca que a primeira. Ou, pelo menos, menos justificável. Não sei se dá para entender: a vontade de não viver é fruto de não se ter vontade – e aí o Scavarda estaria absolutamente correto, em minha opinião.

Mas, puxa, como é bela a vida! Não, pelo que sei, não estou condenado à morte, não. (O C. Chessman, o bandido da luz vermelha, deve ter pensado naquela frase um montão de vezes antes de ser conduzido à câmara de gás.) Nem tampouco desfrutei de tudo que está ao alcance de, por exemplo, um famoso artista de rádio ou TV, para não falar em poderosos industriais ou coisas assim.

Mesmo assim, sem ter sentido sensações estranhas, sem ter sofrido impactos violentos (só o da antiga “Montanha Russa” da também antiga Quinta da Boa Vista), sem ter ficado pelo menos um dia completamente de porre, sem ter participado daquela reunião de jovens, por muitos chamados de “hippies”, em Bethel, Nova York, sem ter feito um caminhão de coisas vulgares que achamos que nos dão prazer, mesmo assim fica fácil a conclusão de que vale a pena viver. (Não sei porque, mas isto parece um testamento, apesar de não estar deixando aqui nada para ninguém.).

A natureza. Costumo atribuir à natureza a culpa por tudo aquilo que é belo. Uma vez fui à roça. Tratava-se da localidade de Bemposta, distrito de Areal, Estado do Rio de Janeiro. Cada dia para mim era uma aventura, O cheiro de mato, o cheiro da vida, tudo diferente, a natureza em tudo. Colinas, planícies, vales, talvegues, taludes, e a presença marcante da cor da esperança em todas as coisas. E para mim era tempo de esperança. Idéias de ir à igreja todos os domingos estavam fresquinhas. Acreditava em quase tudo que diziam lá dentro do templo. Minha cabeça era inocente e certamente muito mais pura. E a natureza ali a meu lado, oferecendo-me a proteção da sua presença.

Um cavalo cobre uma égua. A gente se esconde atrás de uma árvore. Breve cena de rara beleza. O ato acontece num palco que foi montado em caráter definitivo, mas que terá que ser destruído um dia, em virtude da estréia de uma peça que já é eterna... A evolução (ou o que entendemos por isso) é inevitável.

No meio do mato ou da planície, ou na margem do córrego de águas límpidas embaixo da estradinha de terra, quase nada se ouve. Os pássaros cantam baixinho suas canções de ninar, em nada destoantes da atmosfera que se vive ali. O ronco do avião lá em cima e o ruído provocado pelas rodas ou pelo acelerador do ônibus interestadual na rodovia distante são como uma melodia sinfônica. Sombra de uma árvore frondosa. Tapete de grama ou mato levemente molhado gostoso de se sentar. Pés de goiaba amarelados pelo ameno sol das 4 da tarde. O silêncio, a amplidão. A gente até sente medo. É o medo do belo. (A donzela, escolada pela mãe, pela irmã mais velha, colegas, tia ou quem quer que seja, sente medo ao constatar que o macho já está inteiramente despido e que o brilho em seus olhos não reflete outra coisa a não ser desejo – e quem teria a coragem de maldizer ou discriminar o desejo de comer maçã?). E continua a beleza. Até aquela cobra no lado do caminho. Os olhos fixos em você o fazem pensar em correr ou se defender. E aí vem seu primo, criado na roça, e acaba com ela tranqüilamente. Para o protesto dos estudiosos de algum Butantã do Rio. Você vive.

Meus primos diziam, “Isso aqui é um buraco". E na inocência dos meus 13 anos, naquela gula pelo leite quentinho e pela manteiga derretida no pedaço de broa de milho saída há pouco do forno à lenha, ou pelo requeijão do laticínio da fazenda, acho um absurdo tal afirmação.

Volto à cidade. Estou mais gordo, é claro. Cresço. Emagreço. A vida, um pouco mais feia, ainda é vida, ainda é bela. É uma letra do Chico que, nas horas vagas, conduz até nossos olhos lágrimas que não derramamos; é uma piada infame num teatro qualquer e uma pizza ou um chocolate depois; é um filho que nos aborrece e nos ensina; é a Irene do Caetano; é uma frase machadiana que se lê umas quatro vezes; é a Valsa do Imperador, que escuto hoje a tarde inteira e daqui a alguns dias volto a escutar; é aquela morena clara de mini-saia estampada e grossas coxas discretamente cabeludas onde imagino meus lábios pousando...

O sentimento de que o que estraga tudo é a competição, a luta por um lugar ao sol. Admiro o trabalho, ou ainda, o estudo (um outro tipo de trabalho) e a perseverança, que é uma virtude. Mas essa luta que travamos, e que nos obriga a destruir para que não sejamos destruídos, enganar para não sermos enganados, para depois dizer que vencemos – uma vitória jamais convincente, – prejudica o culto ao belo. Ficamos cronometrados e dissociados em nossa essência. Nunca fazemos o que queremos, ainda que tivéssemos tempo para fazê-lo. Às vezes, acabamos tendo apenas uma hora, que nunca chega, para observar a vida, que irrefutavelmente é muito bela para que vivamos assim.

Rio, outubro de 1969