FUTEBOL DE BOTÕES
Sobre uma velha mesa de madeira com a superfície já quase em lascas, mãos sedentas manipulavam um jogo de futebol. Silhuetas de botões formavam os jogadores nesse espaço cheio de fendas. Um olhar sonhador transformava a mesa num extenso gramado. O silêncio, enquanto fazia a escalação dos times. No campo imaginário uma fileira rubro-negra e outra azul e branca desfilam antes de tomarem suas posições. A concentração era total nesses instantes antes do começo... O coração palpitante... As palavras presas na garganta... A emoção represada para depois esvoaçar qual bandeira ao vento. Os movimentos todos limitados em apenas duas mãos... Mas ninguém na arquibancada para assistir aos sonhos... Ou todos eles na imaginação fértil, vibrando nos lances ou com o ouvido em algum rádio, seguindo com fervor esse campeonato quase real onde se seguia todas as regras. Entretanto naquele dia esquecera-se que era mineiro pelo destino e vestira a camisa rubro-negra adotada pelo coração.
Até que o relógio marcara a cronometragem inicial... A voz quase em transe era gasta nos noventa minutos seguintes onde se respeitava todas as regras profissionais. Da sala ouvia-se aquela voz tão conhecida de todas aquelas tardes. As palavras tropeçavam umas nas outras como se brigassem pelo tempo exato de serem ditas. Às vezes o raciocínio das palavras não acompanha os movimentos. Mas nesse ofício, essa façanha era obrigatória e significava eficiência. Da sala ao lado da varanda, cuja visão era apenas uma vidraça que mal se abria, éramos a única platéia que apenas ouvia, acostumados a essa rotina que se arrastava há tanto tempo nessas tardes... Uma das muitas as quais ele se entregava a esse ofício. Era tão normal para quem ainda não compreendia a importância de sonhos. Pensava ser apenas brincadeira de criança. Mas narrar futebol era realmente a sua paixão. Ele brincava com os botões e ao mesmo tempo dava-lhes vida através de sua narração. Cresceu assim... Com esse dom e essa vontade de ser um profissional.
A vida avançou, além daquelas tardes que atravessaram o acaso de um metro por setenta de madeira já bordada de lascas e fendas. Adolescente ainda buscou oportunidades numa rádio local e conseguiu. De repente se viu diante de um espaço maior que a velha mesa. Nele corriam jogadores humanos e os movimentos já não eram criados por suas mãos. Mas os olhos os seguiam atentos como se adivinhassem todos os movimentos e os narrava numa ação simultânea de voz e olhar. Nem bem havia adquirido o conhecimento necessário desse mundo esportivo, quis ir adiante. Foi. Viajou cidades. Viveu sozinho. Amargou saudades. Tornou-se maduro antes do tempo. Juntou à sua experiência esse viver quase inconstante, essas paradas em tantas cidades... Enquanto a voz, através do rádio, atravessava o limite de municípios e inundava a casa daqueles que assim como ele, admiravam o mundo esportivo.
Sempre admirei essa sua garra. Essa vontade sem limites em lutar pelo seu ideal. Não foi fácil. Não tem sido fácil. E nem sempre é possível alcançar o ápice de um sonho sem que antes tenhamos pesado todos os desafios. Há sempre muitas traves dificultando o gol, além daquelas que limitavam a sua visão de narrador. Agora, nada é mais como naquele tempo em que o estádio era a velha mesa da varanda e os jogadores meros botões manipulados por mãozinhas sedentas de brincar. Quantos sonhos escondidos ali naquela velha mesa com uma porção de botões espalhados! Quantos sonhos escondidos naquela voz vibrante e infantil que trombavam nas palavras! Nunca se sonhara tanto naqueles momentos... Em todas as palavras que brigaram em sua boca. Na sua luta, nesses instantes de futuro sonhado, explodira sempre essas mesmas palavras já tão automáticas! Mas as suas palavras mais íntimas ficaram anônimas e seu “sangue todo dado” nesses sonhos.
Compreende agora que a vida é um jogo. E antes nem imaginava que faria parte dele... Esse eterno jogo de botões, que brinca com nossa capacidade de jogar. Só que nesse jogo de viver, eficiência só não basta. Mas avança como pode ou como lhe exige as necessidades da vida nessas repetidas vezes em que procura fazer o gol da vitória neste grande estádio da vida. Não muito diferente daquelas tardes... Naquela velha mesa, perdido na ilusão oculta de imaginar o espaço do mundo. São fendas que se abrem... E lascas que se perdem ao longo tempo.
Nesse jogo eterno de viver é apenas mais um jogador dentre esses que correm à sua volta. Já não é o narrador que desenha todos os movimentos em palavras. Silenciosamente, pensa apenas em pegar a bola e colocá-la no gol, embora para isso existam técnicas e dribles adquiridos com a experiência. Técnicas e dribles que narrara tão bem, embora ainda não os conhecessem. E agora veste esse personagem... Não é tão fácil assim. O ideal é o gol que se descortina a sua frente e tem a forma de todos os seus sonhos. Mas por diversas vezes cai. Leva falta. Levanta. Pega a bola no pé. Novamente, rola ela pelo gramado infinito... Jogador de fibra. Tem raça.
Há algum tempo encontrei aqueles velhos botões. Estavam dentro de um saquinho plástico amarelado pelo tempo. Por instantes ainda os olhei. Minutos apenas... O instante necessário para recompor toda uma história e relutar em guardá-los... Afinal já estavam tão velhos ocupando espaço no fundo de uma estante. Penso que eu ainda não compreendia a importância dessas fases da vida e apaguei essa lembrança física. Depois nunca mais os vi. E nem me lembro realmente qual foi a minha atitude naquele dia. Só tenho certeza de que não os guardei ou os perdi em algum desses espaços do tempo. E me arrependo agora, nesses momentos em que um simples achado pode significar um sonho sonhado tantas vezes ou uma personalidade impregnada em um objeto tão simples. Talvez toda uma origem...
Agora, depois de tanto tempo, minha memória relembra todas aquelas atitudes tão conhecidas e busca as palavras que quero dizer, embora elas mesmas não consigam expor tudo. E me surpreendo ao perceber que não abandonou aquele jeito de menino que narrava futebol de botões. Hoje, enquanto as vozes de minha lembrança se misturavam a uma voz infantil que narrava futebol, tive vontade de dizer a ele todas essas palavras. Há uma distância cronometrada entre nós, embora estejamos tão perto. Falha minha, com certeza. Não sou uma boa jogadora e levo muitas faltas. Penso merecer um cartão amarelo se isso realmente redimir todas as minhas faltas. Só não quero um cartão vermelho. Esse colocar de lado às vezes dói tanto!
Independente de toda falha que existe no jogo da vida, quero dizer a ele que o admiro e torço sempre para que o seu jogo leve a melhor. Muitas vitórias são o que eu espero sempre, como irmã e torcedora. Como alguém que o viu crescer e sonhar seus sonhos mais bonitos em volta de uma velha mesa, vinte e dois botões e uma voz vibrante e quase técnica que pareço ainda ouvir naquelas tardes de tão longe!
( CRONICA EM HOMENAGEM AO MEU IRMÃO CAÇULA AFRÂNIO- ESCRITA EM 2005)