Mãe também mente...
A casa era antiga, com espaçoso terreno nos fundos, ainda que situada em uma das principais avenidas do bairro.
Árvores frutíferas ocupavam boa parte da área. Ali, destacava-se imponente mangueira, senhora do pomar. Dava-nos mangas espada — para mim, a mais saborosa. Caqui, abiu, goiaba, sapoti, jambo, carambola... completavam a quitanda doméstica.
Pintinhos, comprados em feira, desfrutavam do melhor ambiente para crescerem saudáveis e felizes, ciscando em meio às folhagens secas. A maioria viria a se transformar em aves adultas.
Naquele espaço, três filhos e seus amigos criaram território livre, laboratório onde sonhos e imaginação eram transformados em realidade infantil, inexistindo noção de tempo, como acontece com a maioria das crianças.
A porta da cozinha abria-se para a varanda dos fundos e o aroma do pomar era mais um tempero na comidinha preparada com amor e prazer, nos fins de semana. Nos dias úteis não havia tempo para esse carinho. Três turnos ministrando aulas, impossível!
Não reclamava, ao contrário, dizia-se feliz com os quatro homens da vida dela – marido e três filhos. Mãe amor-doçura-paciência-dedicação-determinação.
O mais velho, envolvido em suas leituras e alguns programas na TV e, o mais novo, na fase de aprendizado, não davam muito trabalho (naquela época!). Ah... mas o filho do meio e suas peraltices...
Carinha redonda, algumas sardas salpicadas na face, cabelos loiros encaracolados, sorriso maroto, a todos encantava. Parecia um anjo. Parecia...
Era líder e herói da turminha que desassossegava as respectivas mães-vizinhas.
Sua especialidade era a total interação com qualquer bicho. Pegava-os com as mãos nuas, sem nojo ou preocupação. Alguns eram submetidos a cirurgias experimentais, creio, por pura curiosidade — qualidade inata às personalidades investigativas.
Essa interação era manifesta desde a época em que compartilhava a chupeta com sua inseparável e apaixonada cadela vira-latas — por ele batizada “Calinha”... Penso, por isso, que era protegido, pois nunca aconteceu nada grave além de mordidas, marradas, picadas... (vacinas em dia, claro! Antirrábica e antitetânica, faziam parte do pacote de segurança).
Paradoxalmente, embora demonstrasse carinho com todos os animais, alguns pintainhos sucumbiam, ora comprimidos junto ao peito, ora transformados em pêndulos, seguros pelo pescoço, nas corridas por entre as árvores.
Em seu “currículo” de traquinagens consta façanha que nunca entendi como a empreendeu e nem ele mesmo lembra como a conseguiu: não é que certa vez o moleque surgiu na porta da cozinha, segurando um mico selvagem pelo rabo?
— Mãe, olha o rato bonitinho que peguei!
Diante do grito de pânico da mãe, o moleque, no susto, soltou o “rato”. Livre, o coitado do mico sumiu nas copas das árvores enquanto o garoto, estupefato, olhava para a mãe sem entender o porquê de seu grito... era apenas um inofensivo rato...
Note-se que a entrada da cozinha era uma espécie de portal dos horrores, um Torii às avessas. Era ali que a mãe tomava conhecimento das mais inusitadas “façanhas” do “anjinho”
Certo dia, no portal, com as mãos atrás da cintura, naquela pose de enfrentamento comum nesse tipo de moleque:
— Mãe, você é mentirosa!
— Mentirosa!? Como assim mentirosa?
Exibindo o que sobrou de pinto em estado de decomposição, confirmou:
— Mentirosa sim! Aqui o pintinho que a gente enterrou pra ir pro céu! Não foi nada!
— Meu Deus! Que nojo! Larga isso já e vem lavar essas mãos, garoto danado!
Fotos: Andrey, com os dois braços fraturados, um em cada semana, comandando um carrinho no parque. Na outra, relembrando os bons tempos...