O maestro Cordeiro
O vi pela primeira vez quando eu tinha dezessete anos de idade. Mesmo bem jovem eu já fazia parte do Alta Tensão, um conjunto musical da minha pequena Aracati. Mamãe quando soube que o velho Cordeiro ia ser o mestre da banda, me disse que na sua juventude ela e algumas suas amigas colegiais, riam por acharem meio loucos aqueles sons solfejados de notas quando ele, o jovem Cordeiro, então músico principiante da banda ficava com outros companheiros batendo compassos e entoando notas no local onde a banda ensaiava. Isso se deu na década de 1940 e agora o experiente homem estava de volta à velha cidade, contratado pela prefeitura para montar uma nova furiosa. Ele, era agora sargento da polícia militar e ostentava a lira entre as divisas de antigo praça, era um homem alto, branco quase albino de voz rouca e de um olhar vesgo e necessitado de fortes lentes fundo de garrafa. Era duro e exigente nos ensaios, discipinador linha dura, reclamava dos ausentes por suas eusências e exigia ordem e harmonia. Na banda havia músicos da idade do mestre, eram alguns seus contemporâneos das antigas, eu, por ser um dos mais jovens, era com muita freqüência interrogado por ele, não porque eu fosse um dos que mais faltassem aos ensaios, mas porque o mestre nas horas de ensaio gastava, dez, quinze minutos discursando e pra expor o que queria usava muitas vezes a palavra “hipótese.”
- Agamenon o que é uma hipótese? Eu meio tímido e desprevenido a primeira vez respondi com outra pergunta:
- É um exemplo mestre?... e ele continuava: - é como se fosse, e dizia: - vamos a uma hipótese de que um músico esteja adoentado e não possa vir ao ensaio, eu como mestre preciso ser avisado de que o músico está doente, alguém da família ou os colegas me tragam o aviso, pois se assim não for, vou botar falta e os que muito faltarem sem motivos justificados eu posso dispensar da banda! Entenderam? -Sim senhor!
E por aí iam as sua hipóteses.
Além da banda o mestre foi convidado para formar um coral no Instituo São José, e por lá foi que notei que ele apesar de seu meio século de vida, ainda olhava pras mocinhas como um cavalo velho que quer se assanhar. No dia em que veio a minha sala, me apontou, citou meu nome e até me chamou pra ajudá-lo a classificar as vozes dos alunos. Naqueles idos da década de setenta, ele ainda falava de uma matéria escolar chamada educação moral e cívica, que era sua intenção ministrar paralela à música, mas ficou firme mesmo foi na banda. Naquele ano prestei concurso pra Marinha e fui aprovado mas, só iria me apresentar em Forteleza uns dois meses depois. Nesse intervalo de tempo, notei que o experiente veterano muito se orgulhou do seu pupilo. Eu praticamente já era de maior, estava com dezessete anos e meio, chegamos a beber juntos algumas doses e a conversar como que de homem pra homem. O maestro Cordeiro era figura bem humorada quando nas horas de lazer, às vezes chegava a exagerar nas bicadas de aguardente, é tanto que uma vez se acidentou cortando o nariz num balcão de vidro, em que deu de cara sob efeito etílico.
Ele se afeiçoou muito a mim e isso talvez tenha sido por causa da minha disponibilidade em ouví-lo e demonstrar muito interesse pela arte dos sons, é tanto que, certa vez chegou a me dizer que gostaria muito que eu fosse o seu sucessor na banda, mas o destino me apontava um outro horizonte. Muito mais se orgulhou quando me viu, cinco anos depois, chegar por lá fardado, sargento fuzileiro naval músico.
- Meu velho mestre, onde o senhor estiver saiba, que hoje estou com a idade aproximada que o senhor contava naquele ano em que veio fundar a bandinha do Aracati, e a afinação do meu sentimento de gratidão para com a senhor é tão absoluta quanto a que o Criador doou aos ouvidos do grande Mozart. A minha memória nos aproxima como se aquele nosso bom convívio tivesse acontecido hoje pela manhã, e parece que ainda escuto a sua costumeira pergunta nos intervalos sonoros:
- Agamenon o que é uma hipótese?
– é uma suposição possível mestre.
Hoje lhe responderia assim, mas com uma convicção respeitosa ainda maior do que a imprimida naquela resposta dúbia e interrogativa de moço adolescente.