Tango - Parte X - A carta da torre

Alice entrou na catedral.

Lá de cima, do altar, os anjos de barro e madeira observavam aquela mulher com seus saltos altos. Eram ídolos feitos de puro desespero, por homens que já não possuíam mais fé. E ao centro, o cordeiro de Deus, a perfeição encarnada, dizia a única verdade ao mundo que os homens entendem: Estou de braços abertos para você. Porém morto, imóvel e petrificado.

E essa verdade inundava toda a catedral revelada pela luz de um dia assustador, relutante em continuar seu caminho.

Alice caminhava vagarosamente em direção á terceira fileira de bancos próxima ao altar, em direção àquele homem. O filho da negação. Aquele que conheceu a ira de Deus. Heitor, o esquerdo.

A imagem daquela coisa amontoada sobre o banco, vestida em seu terno escuro, deixou de ser humana. Era uma massa de carne quase opaca, inimaginavelmente culpada. Que se esvaia num lamento tão silencioso, numa oração tão raivosa e cheia de rancor.

Heitor não chorava. Heitor sentia as dores causada pelo peso dos cadáveres que arrastava atrás de si. Mas era impossível apenas uma lágrima que fosse. E como pesavam os cadáveres de Mariane e Gabriel....Sua repulsiva e amada esposa...seu filho, sua carne, seu sangue....

Tudo tão óbvio quando a dor é de verdade, que Heitor quis morrer. Quis ele mesmo providenciar sua descida ao inferno. Quis ele mesmo cuidar de sua danação eterna....Mas Heitor era antes de tudo um fraco. Um animal sem honra.

Seu violino se calou. Não mais tocou nada, desde o momento que soube do assassinato na chegada da noite. E quando soube que haviam lhe arrancado sua família, o tempo se dividiu. Primeiro, o tempo do coração esfacelado. Depois, o branco. O vazio. O nada. Nenhuma lembrança. A imersão na cegueira. Na surdez.

E então, depois de 25 dias de absoluta ruína, levantou-se o cão ferido. Aquilo não era mais um homem com dores ocultas. Era a visão da feiúra do mundo. O verme que se arrastava pela terra. Só. Imerso na culpa. E que se assentava num banco da catedral, esperando que os bonecos de barro dissessem o por que daquilo tudo. Mas na verdade, não queria mais respostas. Não queria saber de mais nada no mundo. Dali em diante, seria apenas um parasita, que espera a morte lentamente, se encantando com cada dor que punisse sua omissão. Deu desleixo. Seus pecados atrozes cometidos em porões, em depósitos de lixo, em camas suspeitas......Por ser quem era, é que Deus o punia.

Alice se aproximou de Heitor. Não disse nada. Apenas sentou-se ao seu lado. Olhava também par aquele homem de barro crucificado, mas também não queria respostas. Pois ela sabia que cada resposta trazia atrás de si mais perguntas.

Ela colocou sua mão sobre a de Heitor.

Heitor falou, com uma voz que não parecia sua:

-Me deixe....

-Não posso.Faço parte da sua vida por mais que não queira. Nunca ficará sem mim.

-Você é culpada.

Alice não entendeu.

-Culpada de que?

-Foi você quem me levou para aquele buraco. Eu deveria estar lá com minha esposa e meu filho.....

E calou-se subitamente.

Alice responde:

-Entendo que está num momento difícil. Mas não tente encontrar culpados para uma fatalidade....

-Não foi fatalidade. Eles foram assassinados.

E olhou acusadoramente para Alice:

-E sei que foi você?

-Está louco? Como pode me acusar de algo assim? Que tipo de monstro pensa que eu sou?

-Ainda não sei. Mas aqueles tiros eram para meu filho e minha esposa. Como pode não ser você? Eu entendi. Você queria os dois mortos para ficar comigo....

Alice se espantava a cada frase, e sentia um frio terrível no estômago.

Heitor continua:

-Quando conseguir provar, vou te colocar na cadeia. Sua vagabunda.

-Adeus Heitor. Você é doente. É como eu sempre imaginei....

E saiu da catedral.

Heitor permaneceu por mais um tempo, odiando as imagens de barro, e tentando encontrar uma maneira de fazer aquela vagabunda pagar por todo o mal. Teria que ter um fim tão doloroso quanto o de Tomás, já que era a causadora de todo o seu mal.

Os dias se passavam como uma marcha que chega cada vez mais perto do inferno.E aos poucos, Heitor foi voltando ao mundo. O peso virou apenas ódio, e o desejo, apenas maldade. Precisava matar Alice. Mas como? Deu sorte com Tomás, mas não poderia repetir as coisas da mesma forma.

Nesse tempo, retornou Nicolai. O insuportavelmente alegre. Aquilo que as pessoas irracionalmente otimistas chamam de amigo. Aquele que não tendo talento, se valia da simpatia de criaturas medianas.

Heitor estava tão só em sua ira contida na falsa calma, que nem percebeu a entrada de Nicolai em sua vida. Ele tanto insistiu, que se tornaram amigos, apesar do ódio profundo de Heitor. E internamente, Heitor se perguntava o que havia visto aquele ser medonho nele, que o fizesse se empenhar tanto na amizade.

Quando Heitor se deu conta, sua vida se resumiu a tocar um violino mecanicamente, odiar Alice e se lamentar nos ombros de Nicolai. No fundo, Heitor passou a ter certa simpatia por aquele violoncelista. Passou até a suportar suas piadas infames. Nicolai o fazia se esquecer às vezes do quão a vida pode ser intragável.

Heitor via Alice apenas de longe. E não se aproximava. Queria matá-la. Mas apenas na hora certa. E Nicolai também não era muito simpático àquela mulher com olhos meio vazios. Dizia ele ter medo daquela mulher insana. Como ele saberia disso?

Numa dessas noites, Heitor e Nicolai resolveram ir a um salão de dança. Ambos beberam desesperadamente. Riram, falaram as bobagens que se diz quando se está bêbado...e tudo era quase um esquecimento das dores. Até que a música morreu. Surgiu um tango nas caixas de som. Entraram os casais.

No canto mais escuro do salão, Heitor observava aqueles corpos que se contorciam dolorosamente. As pernas se cruzavam velozmente, enquanto todos mantinham seus rostos impassíveis.

Heitor não sabia dançar. Nem sabia por quê foram a um salão desses, se Nicolai também não dançava. Mas era interessante observar da penumbra, a evolução daqueles corpos quase torturados.

Mas um corpo passou a ser especial em meio a todos. Era o corpo de Alice, que se esfregava no corpo de outro homem.

Heitor não conseguia se mexer. Nicolai observava bem seu rosto, como quem não vê nenhuma surpresa.

E enquanto Heitor não esboçava nenhuma reação, Nicolai falou:

-Esse é o momento em que a vadia está vulnerável.

Alice dançava com uma expressão dura. Suas pernas, seu corpo, faziam desenhos sem solução no espaço. Aquela Alice, Heitor não conhecia. Aquela mulher que martelava o piano, como uma macaco histérico, e aquela amante pervertida e suja, em nada se pareciam com aquele ser que era quase uma estátua. Ela era a arte da petrificação.

O ódio no coração de Heitor era alimentado a cada minuto, e também seu desejo. O que era aquela coisa que dançava afinal? Quem era Alice?

Nicolai fala:

-Sei da culpa dela.

Heitor ouvia frases soltas. Seu coração quase que explodia no peito. Sentia o veneno das palavras correrem em suas veias...sentia a cegueira tomar conta novamente.

Acabou-se a dança. E Heitor percebe que não esteve ali, sentado...esteve dançando com Alice.

-Quero ir embora....

-Espere.

Com a cabeça entre as mãos, Heitor não sabia o que fazer. E imerso em sua fraqueza de sempre, ouviu o grito vindo do banheiro. Falava-se de uma mulher morta.

Heitor apenas observou......Mas uma curiosidade insólita fez com que ele e Nicolai fossem até o banheiro.

Quando passaram por toda a gente, viram o corpo de Alice atirado ao chão. Havia um pó branco em seu nariz, provavelmente cocaína...Seus olhos arregalados, não eram mais belos. Eram desesperadores. E aquele olhar final, se cravou na alma de Heitor. Assim como se cravaram na pele aquelas unhas vermelhas em outros momentos.

Um estrondo da sinfonia de Mahler passou pela cabeça de Heitor.