Tango - Parte IX - Dominação

A escuridão tomou conta de tudo.

Não era para ser assim. Sentado na sala de concertos, como apenas expectador, Heitor via aquele fagotista tocar “O aprendiz de Feiticeiro” de Paul Dukas. O fagotista que Heitor já havia visto antes, quando de seu encontro com Alice. Otto. Um nome para se esquecer, antes que as coisas ficassem piores.

Preferiu apenas prestar atenção na música. Mas mesmo assim, tanto os olhos do fagotista, quando a angústia não deixavam Heitor em paz. Uma paz que Heitor conheceu muito vagamente quando criança, em companhia de seu pai.

O que foi feito daquela criança? Naquele corpo agora, só habitava o monstro. O ser feio e machucado, ridicularizado por si próprio. Imitador da vida.

Heitor não teve a intenção de ver aquele fagotista. Apenas foi ver a um concerto para esquecer do mundo. Mas o mundo também estava ali. Tocando desesperadamente um fagote, imitando a vassoura enfeitiçada que se punha a limpar um laboratório de um mágico. E Heitor tinha a nítida impressão de ser perseguido pelos olhos castanhos do homem que emitia notas após notas, como se a dança nunca fosse acabar. Mas acabou, quando o maestro fez tudo voltar ao normal.

As luzes se acenderam, os aplausos, e a saída.

Na porta do teatro, enquanto observava os atlantes da fachada, sentiu vontade de fumar um cigarro. Coisa que não fazia a muitos anos. E que naquele momento, faria todo o sentido.

Surge a voz:

-Como está?

Era Alice.

-O que você está fazendo aqui?

-O mesmo que você. Vendo o concerto. Ótimo o fagotista, não?

-É bom.

Silêncio longo e pesado.

-Veio sozinho?

-Sim. Minha esposa detesta música clássica e resolveu ir visitar a mãe....e você??

-Sozinha também.

-Então ta...a gente se vê....

-Espere...fiquei um pouco mal com o que lhe disse naquele dia...estou realmente envergonhada de tudo. Me desculpe.

-Já esqueci...

-Posso pagar pelo menos um café pra apagar a má impressão?

-Acho que não.

-É só um café. Se você se recusar, vai fazer eu me sentir pior do que já estou...

-Sendo assim.....

A noite encobre os desejos. Encobre os crimes. Encobre amores tortos e corações doentes. E a mesma sombra que se alastrou pela noite, tratava de projetar ainda mais os olhos vacilantes de Alice atrás da xícara de café. E Heitor não entendia o que havia neles que o fazia temer e desejar ao mesmo tempo. Nenhuma mulher era assim. Nenhuma mulher era tão inclassificável...

E por ser qualquer coisa de inevitável, é que Heitor novamente se viu entre os lençóis de um quarto de hotel branco, lambendo aquele corpo de 30 anos, tão macio e tão simétrico. Novamente, não era Heitor que estava ali, entre aquelas coxas. Era a besta. Era um cão raivoso, que rompia tecidos, triturava ossos....

Heitor achava que aquilo era amor. Um amor de cão vagabundo. Um amor que as feras entendem como um meio de expurgar do corpo a doença que queima o sangue.

E em nome de todo esse amor dos seres furiosos, é que todas as tardes passaram a ser de Alice.

E Alice marcava mais que o corpo de Heitor com suas unhas e seus dentes pequenos. Marcava sua alma, com aquela mistura de nojo e desejo. O coração de Heitor era amontoado de imundície, impulsos bárbaros e o afeto dos invertidos. Era o inferno.

Mariane sofria, todas as vezes que percebia alguma marca no corpo de Heitor, todas as vezes que sentia o perfume Dior que ela nunca havia usado, todas as vezes que os olhos de Heitor desapareciam de seu rosto, e se fixavam em algum lugar inalcançável.

Mas o que se fazer em momentos de crise? Mariane preferia se calar. Entendia que o importante em sua vida estava feito: seu filho. Sua razão de viver. Sua forma de se manter viva. De se manter menos digna de pena.

Mariane tomava seus calmantes. Enquanto as marcas nas costas de Heitor ficavam mais profundas. E era só isso.

No conservatório, Heitor era obrigado a encontrar com Nicolai. Esse ser irritantemente otimista e simpático. Essa criatura falante e amigável, que Heitor engolia, como uma forma de não ofender mais ainda a memória do defunto Tomás. Heitor se sentia um pouco culpado ao ver aquele imbecil barbudo tocando de maneira mediana o seu violoncelo.Qual o segredo daquele berne de calça jeans, para sorrir tanto para todos. Heitor evitava o quanto podia ter contato com aquele parasita.Mas nem sempre conseguia. Sempre havia convites para um futebol, para algum programa no parque....e todos recusados.

Heitor ficou feliz no dia em que soube que Nicolai ficaria um tempo afastado. Menos um cadáver dependurado em suas costas. Menos um cretino para ter de fingir seu sorriso. E nesse mesmo dia, Alice apareceu de surpresa no conservatório. Os saltos mais altos que o de costume, e agora, a boca mais vermelha que o normal.

-Vim lhe fazer um convite. Mas antes que aceite, preciso lhe avisar que se não tiver estômago forte, melhor recusar.

-Do que se trata?

-Você vai ver um pouco do meu mundo. É um clube para convidados. Nós chamamos de caverna. E então...topa?

Heitor já sabia do que se tratava. A questão era: teria coragem?

Mas seu corpo todo se excitava com a possibilidade de ir pela primeira vez a um lugar ....tão alternativo. Se é que era isso mesmo que pensava.

-Eu vou.

Alice sorriu, sem mostrar os dentes. Aquele sorriso que ela dava todas as vezes que perfurava o corpo de suas amantes com alfinetes. Ou quando as chicoteava.

Saíram, enfim. E chegaram ao prédio que parecia abandonado, mas que abrigava uma casa noturna bastante discreta nos seus porões.

Descendo dois lances de escada, foram dar num imenso salão negro, onde pessoas estavam amarradas, com máscaras negras e roupas de borracha. Outras as chicoteavam, ou apenas davam tapas sonoros.

O cheiro de suor era nauseante. Heitor se excitava.

-Essa é uma parte do meu mundo. Aqui embaixo, não há pecado.

Quando percebeu, Alice estava entre duas mulheres. E um homem se aproximou por trás, dando-lhe uma gravata.

-Aqui, sou eu quem domino. – Disse o homem.

E quando se deu conta, Heitor estava fazendo movimentos com o corpo e sendo possuído de uma maneira tão grotesca e dolorosa, que nem mais se importou de estar em público. Naquele momento, tudo deixou de ser errado. Era tudo imundo. Mas era tudo familiar.

E era somente sendo amarrado em tiras de couro que o cão raivoso cessava sua fúria e se esquecia de fingir para o mundo.

A noite desceu. Dessa vez, sem charme. Não escondeu nada do mundo. A noite gritava lá fora.

E na saída do colégio, Mariane esperava seu filho. Mais uma vez, o celular de Heitor estava desligado. E ela sabia o que ele estava fazendo. Mas não se importava mais. Se havia uma coisa que Mariane sabia, é que nunca amou Heitor. Então, tanto faz se tinha amantes...se algo esteve sempre errado...pensou ela em ter amantes também...mas aí, deu uma grande preguiça do mundo.....iria plantar orquídeas..

Seu filho demorou...ela começou a se preocupar...mas finalmente, ele surgiu no portão da escola, sorrindo timidamente como o pai. Mas aquele menino não era como o pai. Ele era a verdade......

E nesse momento, em que a noite passa a encobrir seus olhos para não ver os perseguidores da criação, é que se deu o evento.

Dois tiros cortaram o ar duro da noite.

Um atingiu o coração de Mariane. O outro, a cabeça de seu filho, que se espatifou contra o muro.

A mão que desferiu os tiros, desapareceu entre os gritos, num carro escuro.

Sobraram os corpos que caíram lado a lado. O de Mariane e o corpo do pequeno Gabriel.

Pela primeira vez, a cidade se calou.