Tango - Parte VIII - Fantasma

Pequenos pecados. Pequenos alfinetes cravados na carne. Pequenas imundícies que nascem grudadas na pele, impossíveis de serem retiradas. Por mais que se queira retirá-las do corpo, ainda assim, elas permanecem. Acusando. Marcando como um sinal de vergonha, aquele que carrega as marcas do que se é. E ser, é difícil. Não ser, mais difícil ainda. Nada causa mais dor, cansaço, frustração do que esconder do mundo, aquilo que todo mundo sabe. Mas ninguém viu.

A pergunta de Alice veio acompanhada de mais um silêncio. E enquanto este preenchia o quarto branco do Hotel, o rosto de Heitor mudava da impassibilidade eterna, para o ódio extremo. As rugas se tornavam claras e ameaçadoras. Heitor se sentia como um ladrão pego no ato do roubo. Como uma criança imunda, ao ser surpreendida enquanto observa pelo buraco de uma fechadura.

Os segundo se passaram lentamente, até que seu cérebro processasse a pergunta e, convertendo o ódio e o medo em espanto, respondesse com outra pergunta:

-O que?

-Na verdade não foi uma pergunta. Foi uma afirmação. – Continuo Alice.

Heitor esteve por muito tempo desempenhado a função de ser normal, para se deixar abater por uma pergunta tão boba. A calma retornou ao seu rosto, e ele respondeu:

-Claro que não. Acho que essa noite foi uma boa prova disso, não acha? Nenhum gay faria o que eu fiz com você.

E riu naturalmente, como se desconhecesse totalmente a natureza do questionamento.

Alice prosseguiu:

-Não precisa se sentir ofendido. Se tem uma coisa que aprendi a muito tempo, foi a ler as pessoas. Todos os sinais que você me deu até agora, não me deixaram dúvidas. E fazer sexo com uma mulher não prova nada.Na verdade, os gays são os melhores amantes, sabia? Até prefiro.....

Heitor sentia cólera aumentar dentro de si. De que aquela vagabunda estaria falando, afinal? Onde, em que momento, ele havia se traído e deixado escapar algum sinal de sua doença? Mas nem tudo estava perdido. Heitor treinou desde muito cedo sua maneira de andar, de falar, de agir como um homem normal. Impossível para uma criatura desprezível como Alice, perceber o que havia sob aquelas toneladas de concreto amontoadas entre o espírito e o corpo.

-Acho que você está louca. Nunca ouvi uma besteira maior. Certamente se eu fosse gay, não teria problemas em assumir isso. Conheço pessoas gays. Até convivo com elas. Não tenho nada contra. Mas não sou.

Heitor estava tão convicto disso, que quase acreditou em suas próprias palavras. Não tivesse dormido com Tomás e depois o trucidado, juraria que era um homem decente, obcecado por mulheres, cristão temente a Deus e pai de família exemplar.Sabia que as coisas não eram bem assim.

Alice continuou:

-Me diga...o que em mim lhe atraiu?

Essa pergunta sim, algo inesperado:

-Não saberia dizer....acho que o conjunto.....

-Muito vaga a resposta. Mas vou dizer por que me atraí por você....

-Diga....

-Quando lhe conheci, achei você muito bonito...mas até aí, conheci homens muito mais bonitos que você que não me atraíram nem um pouco. Mas vi que você era diferente. Não me assediou de imediato, como outros homens fariam. Sua timidez é encantadora. Mas o que mais me atraiu, foi a maneira como você raramente me olhava. Não como um homem que olha uma mulher. E sim como um artista admira uma obra de arte perfeita. Me senti ....especial. Percebi também que não tirava os olhos de meus sapatos...Acho que de certa forma, ambos gostamos da dor, não é....? Eu me submeto a ela...Você não tem escolha e a suporta...

-Sinceramente, é das análises psicológicas mais imbecis que ouvi....sem ofensas....acho que é uma ótima pianista....mas fique apenas nisso...psicologia não é seu forte.....

-Bem, pense o que quizer....depois percebi também a maneira que olhou para aquele homem que pegou meu manuscrito na ventania....

-Quem, o Otto....?

-Esse mesmo...nem eu me lembrava mais do nome, mas você se lembra bem. Aquele olhar, não é de indiferença...vi que ele causou um certo desconforto em você....

-Ora bolas....agora já está me ofendendo...

-Vamos parar com essa infantilidade, ok? Não estou aqui te ofendendo...estou afirmando que sei do seu segredo...sei por que você precisa se dopar para dormir, sei por que nunca olha ninguém nos olhos e também como você se sente estranho todas as vezes que um homem se aproxima de você.

-Realmente, você é uma louca...eu deveria meter a mão nessa sua cara, sua ordinária....

-Eu sei em que você pensa todas as vezes que está transando com aquela mulher que se casou com você. Sei pensa em outros homens....

Antes que terminasse a frase, Heitor desferiu um tapa na cara de Alice, e imediatamente, um filete de sangue escorreu de sua boca.

-Vagabunda...gritou ele. Não ouse falar da minha mulher...você é só uma vadia que sabe martelar o piano como um macaco treinado. E com certeza é sozinha...ninguém deve tolerar você e sabe por que? Você é uma cadela venenosa, que provavelmente afasta os homens com essa conversa de fêmea que sabe tudo...mas com certeza daria tudo para ter um macho que a fizesse se sentir menos frígida e menos seca....como eu fiz....Perdi meu tempo com você.

Ambos não acreditaram na conversa que tiveram até ali, e onde isso tudo foi dar.

Alice não chorava nem esboçava raiva. Passou a mão na boca para limpar o sangue e abraçou Heitor que estava de costas. Pediu desculpas. Ele, nada respondeu.

Ficaram ali por um tempo, calados. Ele sem saber o que fazer...se saía ou se batia mais naquela mulher.

Ela sentia que havia conseguido o que queria.

Finalmente, Heitor vestiu a roupa e saiu...sem falar nada.

Alice pegou um papel e começou a escrever. Naquele momento, não sabia por que, veio à sua mente os três abortos que fez.... E se lembrou que não usou preservativo para transar com Heitor. Mas não importava.....

No caminho para casa, Heitor se lembrou de Tomas. Fazia um bom tempo que não se lembrava daquele homem horrendo, que o obrigou a fazer coisas que não queria. E pela primeira vez, sentiu um desconforto, uma culpa, que não havia sentido antes.....

E o corpo com pescoço esganado começou a acompanhar Heitor noite adentro...mas não importava...era só um peso à mais para carregar pelos dias....como tantos outros.

Os dias se foram, histericamente...Heitor não voltou a ver Alice por um bom tempo. Na verdade, depois de um tempo, teve vontade de vê-la novamente. E Mariane percebia essa pequena nota melancólica nos olhos de Heitor. Mas para o bem de todos, apenas se limitou a tolerar. Não gostaria de repetir seu ataque histérico de tempos atrás. Para isso, existiam os calmantes....

E num desses instantes de extremo marasmo, quando parece que a vida não te mais nada a dizer, é que Heitor encontrou Nicolai.

Ele afinava seu violino, quando o violoncelista Nicolai entrou na sala de concertos. Como estavam apenas os dois, teriam de se falar, apesar de Heitor não estar interessado.

-Muito prazer...sou o novo violoncelista. Meu nome é Nicolai Vasconcelos.

-O prazer é meu. Heitor...

-Eu sei quem você é. Já vim a concertos seus antes....Gosto muito de seu trabalho com o quarteto de cordas...

-Obrigado...fico feliz que goste. E então...você vem de onde?

-Do Rio de Janeiro. Morava lá...mas vim para cá pra ficar mais perto de meu sobrinho e minha cunhada. Ela não tem pais...é sozinha. É uma forma de ajudar.

-Sinto muito. E o Marido dela?

-Morreu a algum tempo. Foi estrangulado. Uma morte horrível. Aliás...ele tocou uma vez com essa orquestra...talvez o tenha conhecido. Se chamava: Tomás Vasconcelos. Se lembra?

Heitor se calou.

Um nome é apenas um nome...até que venha acompanhado de um fantasma...