Um pensamento puxa outro

Sabia onde ia. Andava despreocupado cantarolando cantigas no pensamento que minha boca concordava balbuciando sons e palavras, músicas.

Canto pouco, canto para mim.

Passei diante de uma loja de instrumentos musicais. Vi um órgão novo, pela vitrine mesmo. Lembrei de um velho órgão encostado na sala capitular do mosteiro de Olinda. Tinha muitas experiências. Suas teclas, outrora brancas, agora, amareladas pelo tempo, pelos dedos que tocaram-no, pelos panos úmidos que passaram.

Dando o tom certo para o coro dos monges... monges alemães, como os pioneiros daquele mosteiro, depois os brasileiros de outros estados e do Distrito Federal. Eu. Também eu ouvi o som daquele velho órgão. Mas não tão bem. Estava rouco e os jovens monges, noviços e postulantes riam dele. Imagino que ele também riam deles, pela imensa bagagem de humildade, estabilidade e contemplação que tinha em si.

Viajei através daquela vitrine, ouvi o "Te Deum" cantado por mais de 25 monges... vozes angelicais. "Kyrie Eleison", "Veni Creator Spiritus", "Pange Lingua"... e me vi ensaiando, com o organista o Salmo 129 que iria entoar sozinho, na primeira missa que eu estive como cantor da "Schola Cantorum". Quantas belíssimas vozes aquele órgão já acompanhou...

Fui de súbito trazido para a realidade quando um vendedor me cumprimentou e perguntou se alguma coisa me interessava. Quase eu lhe dizia sobre o que me fez lembrar aquele jovem órgão. Mas balancei as mãos e com um ar meio monástico, disse: "Só estou contemplando". Sorri.

Continuei caminhando.

Agora resmungava uns cantos gregorianos, lembrando reverências e orações, obediências e trabalhos, liturgias e músicas. Cantava... só para mim.

Enquanto andava/cantava olhava as pessoas que vinham em contra-mão. O que será que se passa na cabeça de cada pessoa? E bricava de adivinho pela roupa que usavam. Aquele de terno e gravata com uma maleta na mão direita, pensa em números, duplicatas, economias, atrasos... Por incrível, ele olha o relógio no pulso esquerdo. Está atrasado, imaginei. A moça jovem com três brincos em cada orelha, roupas negras, botas e meias longas. Hum... está procurando seu namorado que é roqueiro. Talvez ele use cabelos longos e tatuagens no corpo. Imagino que eles irão encontrar outros jovens, fumar, beber e conversar ao som de "heavy metal". E aquela criança que segura a mão da senhora que apressa os passos, não sei o que ela pensa, mas boa coisa não é, pois quando passou por mim fez careta e me deu língua. Acho que ela sabia que eu brincava de adivinho e me fez uma brincadeira. Crianças...

Não foi insulto.

Gostei.

Passei a caminhar pensando na espontaneidade das crianças. Elas são livres e despreocupadas. Inconseqüentes. Pensei que, se eu, adulto, percebesse que alguém estava me olhando e respondesse ao olhar com uma careta infantil, esticando os olhos e arrebitando o nariz com os dedos e colocando a língua para fora, o que pensaria?

Louco!

E se fosse uma criança?

Um sorriso...

Que gracinha!

A infância é o avesso dos valores adultos. E filosofei sobre valores, pensando que, os valores de cada ser humano é como um edifício construido por ele mesmo e posto como fortaleza, rodeado de canhões para que ninguém invada. Uma qualidade que se dá aquilo que possui. Objeto do meu amor intenso. Idéia e estética.

Ela tinha 10 anos. Vivia como criança em simplicidade e sabedoria, felicidades e tristezas e todas as faculdades lhe eram acrescentada o peso da ausência. Vivia intensamente cada momento do dia. Nasceu por um descuido de pais soro-positivos. Nasceu soro-positiva. Os pais morreram primeiro, mas, antes, antregaram-na a uma instutuição de cuidado com crianças aidéticas, aos 3 anos de idade.

Seus olhos eram grandes e verdes, tinha um semblante triste e sofrido, mas sorria e gargalhava como quem abarcava todo o mundo em seu coração. "Olhos verdes, mas via tudo colorido", Chayanne era assim, cheia de esperanças.

Um dia presenciei seu choro. Chorava com força, chorava com a alma. Fora proibida de comer bolo e salgadinho na festa do dia das crianças. Recomendação médica devido a quimioterapia. Passou mal. Precisou ir ao hospital com urgência e numa paciência nada infantil ela pedia, limpando as lágrimas, para ver, antes, o pôr-do-sol. O motorista nos contou depois. Ela viu.

E viveu, como o sol daquela tarde que se pôs.

Tinha 10 anos apenas e teve um caso de amor com a vida.

Não há valores que sejam maior que o coração humano, seja ele um pedaço de bolo, seja ele todo o universo. Foi uma criança que me ensinou.

Walter Welington
Enviado por Walter Welington em 02/01/2007
Reeditado em 02/01/2007
Código do texto: T333854
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