Tango - Parte VII - Revelação

O silêncio apavora. E ele sempre ofereceu a Heitor, mais perguntas que soluções. Por isso, sempre que ouvia o estrondo final de uma sinfonia, sempre queria entender o que viria depois de tudo aquilo que foi dito. E então percebia que o mundo continuava exatamente do mesmo jeito. Não existe invenção após o silêncio.

E o silêncio acompanhou Heitor por vários dias. Ele o arrastava atrás de si, como um cadáver pesado e incômodo. Um cadáver tão inconveniente, que fazia a postura do violista se curvar involuntariamente, como se o mundo se apropriasse de seus ombros.

E o silêncio acompanhou Heitor quando novamente se viu em frente a Alice, que não via desde o encontro na catedral.

Ela estivera, depois do fato, em viagem com uma orquestra. E pelo que viu nos jornais, o concerto 5 de Beethoven foi estraçalhado. A crítica especializada se derramou.

Obviamente desconcertado com a visão da mulher em saltos inacreditáveis, Heitor sentiu sua boca secar novamente, como quem encara um predador. O instinto de todo animal, nesse momento, o faria bater em retirada, antes que virasse o prato do dia. Mas a civilização tratou de domar estes instintos de sobrevivência. E Heitor forjou um sorriso de naturalidade e a cumprimentou.

Ela respondeu com um sorriso daqueles que não querem dizer nada e retornaram ao ensaio da sonata de Franck.

Não teve mais coragem de olhar acima das partituras, com medo de encontrar aqueles olhos de Botticelli que o perseguiam.

Terminada a sonata, ela falou:

-Sei que ficou estranha a situação entre nós. Mas saiba que não foi minha intenção.

-Não se preocupe. Está tudo certo.

Não estava nada certo. Foi difícil para Heitor, nos últimos dias, conseguir domar seu nojo e ao mesmo tempo, conter seu desejo por aquela mulher estranha.

-Se você ainda quizer, posso te mostrar alguns poemas que andei escrevendo. Não gosto de publicar. Não gosto que me leiam. Mas se for você não me incomodo.

E a curiosidade se instalou na mente de Heitor. Com certeza, não encontraria naquela fantástica pianista, uma grande poetisa. Mas poderia entender talvez um pouco mais aquela mulher. E se a entendesse, poderia até mesmo eliminar aquele desejo estranho que percorria seu corpo, todas as vezes que ouvia ela se aproximar com seus saltos fazendo um barulho quase musical.

Para ler o que ela havia escrito, muito convenientemente, eles tiveram que ir ao hotel onde ela morava provisoriamente.

Jantaram, ela falou muito, e ele na maior parte do tempo, fiou mudo.

Depois de alguns drinks, ela saiu e retornou com uma pasta cheia de papéis. Ele pensou que seria bom ler logo aquelas besteiras femininas, tomar o rumo de casa e esquecer que conheceu aquela mulher.

Mas quando abriu a pasta, viu que todas as folhas estavam em branco.

Pensou que fosse uma piada. Mas antes de perguntar qualquer coisa, Alice mesmo falou:

-Esses, são os poemas que escreverei com você.

Não entendendo nada, só sentiu a língua dela entrar em seu ouvido e seu corpo seguiu o resto do caminho.

Ele rasgou o vestido dela e antes que se desse conta, estava suando e emitindo sons animalescos, como quem quer muito se liberar de um fardo pesado. Ela, por sua vez, assumia uma postura agressiva, a ponto de marcar a pele de Heitor com suas unhas. Até que ocorresse sangramento em alguns dos arranhões.

Por fim, após o embate terminar, dormiram. Como cães após o cruzamento. Ela sobre ele, com os cabelos completamente desgrenhados e com hematomas. Ele com ferimentos e sentindo lá no fundo que entendera o que tanto Alice tinha que o atraía: ela era mais uma pergunta em sua vida. Não tinha solução. Não era um ser comum. Ela não tinha nenhuma verdade a oferecer.

E as gotas de chuva, lá fora, começaram aos poucos a molhar o asfalto.

Mesmo com as janelas fechadas, ainda assim era possível sentir o cheiro de poluição diluída. O cheiro dos perfumes das vagabundas que se molhavam.

Em sua casa, Mariane aguardava o retorno de Heitor, olhando a chuva que descia lentamente.

Ela ligou várias vezes. Mas ele não atendia ao celular. E de uma maneira que nunca se entenderá, naquele momento, ela teve certeza de suas desconfianças.

Ela olhava seu filho dormindo, aquela coisa que tomou 9 meses de seu útero, e pensou se havia mesmo valido a pena ter se dado com tanta facilidade.

Mas o que estava feito, já estava feito. Ela tomou um remédio para dormir e praticamente desmaiou.

Às 6 da manhã, Heitor acordou. Se levantou sem que Alice acordasse e observou aquele corpo na cama. Sua repulsa agora estava misturado a um certo orgulho. Coisa que os homens aprendem desde cedo a ter, quando conseguem ludibriar duas mulheres ao mesmo tempo. Ele sentiu que estava no caminho certo.

Angustiado como sempre, naquele momento lhe ocorria uma série de coisas a se fazer. Em relação a Mariane, em relação às dolorosas marcas em seu corpo e principalmente: como usar Alie a seu favor.

Não deu tempo de pensar em muita coisa. Alice acordou, deu um bom dia e imediatamente perguntou:

-Você é gay?

Trovões no céu.