tango - parte VI - Redenção
Alguém teve muito trabalho para criar o edifício onde Alice e Heitor foram para tomar um café. Era rebuscado. Mas mesmo assim, de péssimo gosto. Uma mistura de estilos que separadamente seriam belos. Mas que não funcionavam juntos.
Após o ensaio, os dois conversaram por algum tempo. Amenidades. Coisas que as pessoas dizem automaticamente, só porque não existe intimidade. E dessa conversa boba, veio o convite para o café.
Ao se sentarem nas cadeiras de madeira, altamente desconfortáveis, um vento espalhou algumas páginas pela calçada. Sem conseguir correr por causa dos saltos altíssimos, Alice não alcançou uma delas. Mas um homem à sua frente conseguiu recolhê-la.
-Isso é seu? – perguntou o home de casaco preto.
-Sim...obrigado.
-Desculpe...mas a gente não se conhece? Você é escritora?
-Não...violinista. Deve ter me visto em algum concerto.
-Ahhh sim.....pode ser. Muito prazer...Otto. Sou fagotista...
-Prazer...Alice. Obrigado por ter pegado meu papel. Com licença.....
-Desculpe...percebi que é um poema no papel. É seu?
-Sim. Mas não sou escritora. Com licença.......
Alice se incomodou com homem.
-Adeus, Mariane.
-Meu nome é Alice.
-Desculpe então...
O homem foi embora pela rua, assoviando alguma coisa de Wagner. Não sem antes olhar para a cara de Heitor que apenas observava aquela cena. E Heitor sentiu um arrepio, quando um sorriso quase imperceptível surgiu em seus lábios.
Em meio à confusão, Heitor pôde ver uma das páginas que voaram, e viu um pequeno poema. De poucas linhas.
Heitor voltou seus olhos para Alice, que agora estava a sua frente e perguntou:
-Não sabia que era escritora.....interessante.
-Não sou. São só anotações....bobagens.
-Gostaria de ler. Posso?
-Um outro dia...quem sabe.....
-Sem problemas. Puxa, não sei como vocês mulheres conseguem andar sobe esses saltos? Deve doer.
Alice riu.
-Isso é um recado....estou pronta para qualquer dor que queira me inflingir....
Ambos riram dessa frase boba.
E riram de muitas outras coisas bobas entre um café ruim e outro, até que a noite surgiu. E era essa a hora de ir para casa.
Naquela noite, Heitor simplesmente saiu do mundo. Dormiu como se tivesse sido dopado. Sem pesadelos que se lembrasse. Apenas uma hora ou outra, a imagem de Alice que surgia à sua frente, martelando um piano de maneira jamais vista. Era uma virtuose e tanto.
Quando acordou, já quase no meio da tarde, viu Mariane do lado da cama. Já aparentemente calma como sempre foi, apenas perguntou se gostaria de comer ou tomar um banho primeiro. E essas pequenas coisas normais, que tanto envenenam uma pessoa, faziam com que Heitor tivesse vontade de esganar aquela mulher ali mesmo. Não lhe interessava tomar uma decisão sempre que acordava. Mas engoliu mais esse impulso, sorriu para ela e respondeu que iria tomar um banho e voltar para o ensaio. Não comeria nada.
Ao sair do chuveiro, entrou na Internet para ver as notícias. E a primeira coisa que viu, foi uma foto, dessas que as pessoas doentias tanto gostam. Um cadáver imundo encontrado num lixão.
Heitor ficou pálido. Havia simplesmente esquecido que havia dado cabo de um pequeno demônio dois dias atrás. E agora ele estava ali, tornando novamente imunda a alma do justiceiro de Deus.
Não havia suspeitos, segundo a reportagem. Mas sabe lá Deus como, já se sabia que era o famoso pianista Tomas Vasconcelos. E o mais curioso: sua esposa estava grávida e dizia não entender por que fizeram isso com seu marido, que nunca havia prejudicado ninguém.
De qualquer forma, o cadáver foi creditado à violência urbana. E a esposa, com sorte, encontraria alguém mais digno para se casar.
Pronto. Apesar do susto, nada ligava Heitor à Tomás. E Heitor poderia sair à rua sem se preocupar. Sem manchas de pecado na alma, nem de sangue nas mão.....
A cidade, que sempre carrega algo de asqueroso em seu ar, ia ficando aos poucos mais cinzenta. Era a noite sem encantos que novamente se estabelecia na terra, ocultando um pouco mais todos os borbulhantes desejos dos homens. E estes, nas sombras, poderiam se espojar em suas mais imundas taras.
E esse véu de vergonha noturno, que encobre as consciências, encobriu também o inevitável: o beijo.
Ao saírem do salão, Alice e Heitor novamente foram ao café. Mas as coisas mudaram. Não falaram mais de amenidades. Começaram a falar de sonhos, família, e numa rápida e intempestiva aproximação, já estavam profundos conhecedores um do outro.
Ela sabia que Heitor teve uma infância complicada, que sua adolescência foi salva pela música e que se casou cedo, mais por imposição dos pais que de fato por amar Mariane.
Ele sabia que ela foi muito jovem para a Alemanha, não tinha pais e que fora sustentada por uma obscura tia rica. E que gastava muito em sapatos, e que apesar da fragilidade aparente, ela era direta e com um masculino senso de praticidade.
E sabendo-se o suficiente um do outro, o nome passa a não significar mais nada. Mesmo que este venha acompanhado de um rosto.
Ao se levantarem para sair, Alice beijou Heitor.
Ela beijou um home estranhamente dúbio e misterioso, por mais que falasse de si.
Ele beijou sua própria versão em saltos altíssimos. Beijou o desconhecido.
Atordoado, ele saiu meio indeciso entre o nojo e o desejo. Deixou Alice em pé na calçada. Não se despediu. Apenas ficou ligeiramente feliz, porque se afirmavam um homem com todos os outros.....ordinariamente como os outros.
Sempre a chuva parecia vir. Mas igual às outras noites, ela apenas ameaçou desabar...e sumiu...deixando o céu com seu costumeiro aspecto violáceo.
Os dias se foram. Depois do beijo, Heitor não encontrou Alice. Seus ensaios seria com a orquestra.
No domingo, Heitor foi à missa com sua esposa e seu filho, e entrou na catedral com a cabeça erguida. Orgulhosamente. Encarou aquele cristo de barro no altar, como quem diz: “Agora, não ouse me acusar de mais nada. Eu fiz seu serviço....”.
Rezaram longamente, cantaram músicas com letras sem significado aparente....e engoliram a massa de farinha, para limpar a alma do resto dos pecados. O poder avassalador de uma farinha......
Ao terminar as orações, a respeitável família segiu para o carro.
O filho de Heitor queria ir ao parque. Mariane ao Shopping para comprar cortinas. E Heitor queria somente sair do inferno. Mas não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Então decidiram ir ao shopping.
Mas quando estavam próximos do estacionamento, viram uma mulher passar a alguma distância, com seu altíssimos saltos, um tailleur azul e um missal na mão. Ela apenas fez um gesto com a cabeça em direção aos três, como quem cumprimenta cordialmente um desconhecido.
E Heitor quis morrer naquele momento.
Era Alice que passava e rapidamente desapareceu no meio dos carros.
E ele teve a nítida impressão de que abaixo de seus pés, realmente estava o inferno.