Tango - Parte V - Olhos de Botticelli
O que se faz com um cadáver?
Essas coisas pesam. E muito.
Um corpo inanimado, não mais inspirava desejo. Havia apenas o ridículo da língua ligeiramente projetada para fora e os olhos esbugalhados. Heitor matou o pecado. Certamente, em algum lugar do céu, Deus estava sorrindo para ele. E o Diabo, próximo de seu pescoço, a ponto de Heitor sentir seu hálito, o aplaudia. O fazia leve de todas as suas penas. O fazia se sentir homem. De verdade.
Enquanto olhava aquele corpo estendido no chão, pensava em qual a melhor solução para eliminar a prova de sua justiça desejada por Deus e pelos homens de bem. Que assim como ele, habitavam lugares escuros e mostravam ao mundo apenas a dureza de sua retidão moral.
O melhor, certamente, seria que o corpo desaparecesse. E nenhum lugar é melhor do que aquele onde se guardam os despojos dos homens: o lixão.
Colocou então o corpo com muita dificuldade no porta-malas do carro e seguiu em direção ao depósito de dejetos.
Por ser madrugada, já não havia quem pudesse ver seu pequeno ato de bondade para com o mundo. Por isso, pôde desenvolver todo o processo de desova do corpo estranho no amontoado malcheiroso. Não sem antes retirar a carteira, o celular e tudo o mais que havia nos bolsos do defunto. E estes logo foram arremessados numa pequena fogueira que ardia em um latão de algum desses produtos químicos. Pronto. Tomas agora era oficialmente inexistente. Para o mundo e para Heitor. Fazia parte do amontoado produzido pela merda dos homens.
Heitor cheirava a tudo o que havia de pior.
O carro foi deixado numa rua dessas bem desertas em alguma periferia da cidade. Provavelmente, seria roubado por algum vagabundo.
Pegou um taxi em seguida, fazendo com que o estômago do taxista se revirasse.
-Para onde, senhor.
-Pra minha casa...respondeu Heitor.
Deixado na porta de sua casa, já quase amanhecendo, Heitor retirou a sua chave do bolso e antes de abrir a porta, olhou para trás. E felizmente, fora o cheiro terrível, nada mais o havia seguido.
Entrou, retirou suas roupas e tomou um longo banho. Limpou seu corpo e com a água, além da imundície, foi embora também a lembrança da noite. Naquele momento, Heitor morreu para muitas coisas.
Quando Mariane entrou no banheiro, e viu aquele corpo nu recostado na parede, se assustou e sua fúria se misturava à felicidade de ver que seu marido havia retornado. Não disse nada. Apenas ficou de certa forma aliviada.
Quando Heitor a viu, saiu do chuveiro e sem dizer uma única palavra, venceu seu nojo, sua aversão e de maneira violenta e agressiva, arrancou as roupas de Mariane. E tão violento foi o ato que ela adquiriu manchas roxas pelo corpo.
Ao terminar, Heitor apenas disse:
-Não tenho ninguém. Nunca tive. Só você.
Mariane preferiu acreditar, apesar de uma voz em sua cabeça sempre ter dito a ela que havia algo de errado. Alguma coisa estava fora de lugar.
E naquele dia, ainda haveria ensaio. Agora para seu dueto de piano e violino. Seria o primeiro dia com uma nova pianista recém chegada da Alemanha. Iriam apresentar a sonata para violino e piano de Cesar Franck. Não a conhecia pessoalmente. Havia visto apenas sua foto em um jornal. Um enigmático olhar como o das pinturas de Boticcelli. Daqueles feitos para se apaixonar.
Depois de tomar seu café, viu o seu filho brincando na varanda. Quase hora dele ir para e escola. E aquele pequeno pedaço de sua carne, era uma bênção e uma condenação. Heitor sempre via naquele menino, aquilo que era quando criança. Um ser estranho, arredio...mas também tão sensível...
Beijou seu filho, pegou seu violino e foi para o salão onde finalmente conheceria pessoalmente a pianista.
Enquanto afinava seu instrumento, ela entrou. Com seus saltos altíssimos e seus cabelos ligeiramente desgrenhados. A roupa, certamente era de alguma grife importante. Com aquele caimento, não teria de ser de outro jeito.
Ela lhe estende a mão, e se apresenta:
-Muito prazer. Sou Alice Martins.
O nome não é nada, a menos que venha acompanhado de um rosto, ou de uma lembrança, ou de uma condenação.
-Muito prazer. Heitor Pascale.
O sono de Heitor era grande. Só naquele momento percebeu que não dormira. Que a noite fora terrivelmente cheia de contratempos. Mas mesmo assim, não deixou de se encantar com aqueles olhos tão vivos e tão enigmáticos.
Nada mais foi dito, até que o último movimento da sonata terminasse. Nunca uma peça foi tocada com tanta paixão por Heitor. Não sabia se pela música, se pelos olhos da pianista ou se pela sensação de liberdade recém adquirida.
Mas algo estava inevitavelmente evidente: havia alguma coisa fora do lugar.
Alice o olhava com curiosidade, como quem percebe uma nascente afeição sem nome.
E Heitor a encarava com os olhos baixos, sorrindo às vezes.
E um arrepio às vezes lhe percorria a espinha, como quem, a qualquer momento, será descoberto. Mas nada relacionado ao assassinato da noite anterior. E sim, como quem mais cedo ou mais tarde, sucumbirá a uma paixão daquelas que sempre terminam como nas óperas: com alguém morto no final.
-Eu sei o que você fez.
Ao ouvir essa frase, após o término da partitura, Heitor sentiu seu coração parar. Do que aquela mulher estaria falando?
Imediatamente, sentiu a presença de Tomás como um fantasma acusador. Como poderia aquela pianista que acabara de conhecer, saber de seus pequenos atos?
Ela continuou:
-Eu sei de seu histórico na orquestra. Sua técnica é muito boa. Já vi alguns de seus concertos solo na internet.
Um alívio imediato. Heitor usou de seu sorriso mais largo e se sentiu pela primeira vez em muito tempo, alguém digno de interesse.
No outro lado da cidade, no lixão, um catador estava fazendo seu trabalho. E um grito pavoroso fez os urubus voarem para longe. Quando os outros catadores chegaram mais perto, viram um corpo imundo e sem vida em meio aos dejetos. Estava em uma cor difícil de descrever.
O sol voltou a se encobrir. Momento perfeito para os cavalheiros respeitáveis e as mães de família da cidade ouvissem o Dies Irae.