Tango - Parte IV - Estrangulamento

A porta se fechou com muita violência atrás de Heitor.

Não existe discussão quando apenas uma pessoa fala, e a outra se afunda numa escuridão semelhante à das profundidades abissais. E então reina apenas o silêncio.

A boca de Mariane se contorcia desesperadamente, as mão se agitavam e assumiam o formato das garras das aves de rapina, e o choro lhe inundava o rosto, enquanto a fumaça do cigarro subia.

Mas por dentro, estava tudo silencioso. E Heitor não mais ouvia gritos. Apenas um desconfortável silêncio proporcionado a pessoas que submergem nas águas de um vasto oceano.

Seus pés apenas se moviam em direção à porta, e sua audição foi recuperada apenas quando a porta bateu de maneira estrondosa atrás de si. Porta fechada, capítulo encerrado.

Parado na porta e observando a noite que cobria a terra como um mau agouro, não sabia o que fazer. Não sabia como pedir perdão. Heitor era, antes de tudo, um fraco. Ele não sentia o mundo, porque aquela vida era de outra pessoa. Uma pessoa que ele inventou num dia de sua adolescência talvez. E acreditou piamente nela, mesmo que isso significasse nunca mais sentir cheiros, gostos e toques. Preferiu ser uma máquina de produzir música, isento de sensações, de vida. Apenas desempenhando o papel daquele que carrega uma cruz, e que muito agrada à um mundo que sente um prazer quase sexual ao ver o corpo se arrastar dia a dia em dores extremas.

Heitor tinha a escolha à sua frente.

Mas como se mover?

Perdido em um silêncio desesperador, mas com o rosto estático como uma estátua de mármore, apenas moveu as mãos para dentro do casaco.

Ali, sentiu a textura de um papel dobrado, onde constava um nome e um número de celular que o fez tremer.

A demoníaca presença de Tomás, nunca mais se extinguiria. Estava bem ali dentro de suas roupas na forma de um número e pior: estava sob sua pele como um câncer incurável, lacerando sua carne, debochando de sua mente cristã. Algo deveria ser feito, e mesmo que fosse um covarde, seu senso de sobrevivência sabia que a vida deveria continuar, não importa como. Era preciso que os rumos fossem redefinidos.

Olhou para trás e viu o vulto de Mariane passar pela vidraça. Viu que seu filho chorava, enquanto a mãe tentava consolá-lo dizendo que papai iria ficar fora.

Como podem as pessoas definir coisas em relação a outras?

A reação de Heitor foi primeiramente a de vomitar. Mas se conteve. Quis entrar novamente em casa, mas sentia que entre ele e a porta agora, havia escombros intransponíveis. E temporariamente, decidiu ir embora. Mas para onde? O que seria sua vida?

Então, usando de sua lógica cada vez mais assustadora, decidiu mudar algumas coisas e parar de fugir.

Saiu pela rua. Entrou num taxi e foi parar no mesmo quarto de Hotel em que esteve na noite anterior. Agora já totalmente isento de qualquer sentimento ou culpa religiosa, ligou para Tomás.

-Oi Tomás. Gostaria de me encontrar com você hoje. É possível?

-Sim Heitor. Mas pensei que você não falaria mais comigo. Simplesmente me ignorou hoje.

-Te explico quando nos encontrarmos.

-Tudo bem. Onde?

-No mesmo hotel de ontem.

Quando o telefone foi desligado, já não era mais Heitor que se encontrava naquele quarto. Era qualquer coisa muda, gelada.

E a noite trazia pela janela, cheiros de coisas podres, de fumaça. Era um vento vindo diretamente dos infernos que certamente ficavam nos porões da cidade.

Apenas o som era celeste. Era a música do réquiem de Mozart. O Lacrimosa, que se repetia como um disco arranhado na cabeça de Heitor e que o fazia crer quase um membro da corte dos anjos.

O som imaginário se quebraria apenas com a batida na porta. E quando Heitor a abriu, viu o homem. O filho da perdição. Aquele que o havia condenado à danação eterna. Mas sem que pudesse pensar em mais adjetivos para aquele ser desesperadamente belo, foi surpreendido com um beijo que o retirou desse mundo e quase o levou próximo da morte.

E a noite prosseguiu com uma selvagem dança sobre os lençóis. Um tango próximo do contorcionismo. E uma coreografia tão natural, que Heitor teve a certeza de que não se aprende certos movimentos. Eles existem no corpo. E só.

Terminado o embate, era hora de se fazer o que era certo, justo e que estava acima de um arroubo animalesco. Era hora de usar a lógica de um musicista mecanizado, que entendeu o que era o certo.

Heitor falou:

-Você está dirigindo?

-Sim...por que?

-Gostaria de ir até o mirante da cidade. Me deu uma vontade grande ver as coisas lá de cima.

Tomás riu. Não entendeu de imediato aquele desejo, mas concordou.

Se vestiram e saíram para o ponto mais alto da cidade.

Quando saíram do carro, contemplaram aquele acúmulo de luzes tremidas.

-É lindo, não é???? – perguntou Heitor.

-Muito......

E enquanto Tomás admirava as luzes, sentiu seu pescoço ser preso a um fio.

Como fora agarrado pelas costas, não conseguiu se desvencilhar e sentia os batimentos cardíacos acelerados.

Heitor o prendia pelo pescoço com, e sentia muita tranqüilidade enquanto sufocava aquele homem terrível. Pôde sentir até mesmo algo se quebrando enquanto aplicava um força que ele próprio desconhecia.

A morte foi lenta. Tomás tentava em vão se desvencilhar daquele que o sufocava, mas sem sucesso. Até que perdeu totalmente as forças e caiu. Como um pedaço de carne úmida no gramado. Uma parte da língia para fora, e algúm sangue que escorreu do corte causado em algumas partes do pescoço.

Heitor contemplava aquela massa inerte de gente, como se observa um cão raivoso morto, que esteve prestes a arrancar algum pedaço de seu corpo.

Quis que a morte fosse um pouco mais lenta, para que aquele ser abominável sentisse mais dores e mais desespero. Mas estava bom assim. Sabia que a dor de um fio impedindo o fluxo de ar e sangue para o cérebro deveria ser indescritível. E deu-se por satisfeito.

O Lacrimosa voltou a tocar na beça de Heitor. Mozart era um grande filho da puta.