MINHAS MÃOS

Alguns amigos meus mandaram-me, por e-mail, duas belas e comovedoras mensagens. Na primeira – “Las manos del abuelo” (música espanhola de autor que desconheço), melodia que dá um especial destaque ao texto: um jovem, ao encontrar o avô, de 95 anos, sentado sozinho no banco de uma praça, contemplando as velhas mãos apoiadas sobre uma bengala, perguntou-lhe porque as olhava tão fixamente. O avô, então, voltou-se para ele e disse: “Pare e pense um momento sobre como tuas mãos têm te servido através dos anos. Estas mãos ainda que enrugadas, secas e débeis têm sido as ferramentas que usei toda a minha vida para alcançar, pegar e envolver.” E prosseguiu narrando como utilizara suas mãos ao longo de tantos anos, no começo vigorosas, mas ao fim doridas e débeis. A outra mensagem, “As mãos”, conta a comovente história de como o célebre Albrecht Dürer (1471- 1528, Alemanha) fez um pacto com o irmão, através de sorteio, para que o mano trabalhasse nas minas a fim de custear-lhe o estudo de desenho, o que era o seu ideal e também do irmão. E assim foi feito. Albrecht passou vários anos no curso. Ao terminá-lo, retornou à sua terra e deu uma festa, ao fim da qual se dirigiu ao irmão para agradecer-lhe e dizer-lhe que, conforme o pacto, agora era a sua vez de ir fazer o curso. Então o outro respondeu que não dava mais: trabalhara duro nas minas, suas mãos estavam esfoladas, a artrite as maltratava muito e não tinha mais condições. Isso comoveu muito Albrecht, que o homenageou com a celebrada tela “As Mãos” (ou “Mãos em Prece”), hoje de grade valor.

Ao acabar de ver essas mensagens, tive a curiosidade de contemplar as minhas próprias mãos, já com oitenta e sete anos de atividade, e nessa contemplação/reflexão demorei algum tempo, repassando quase todas as fases de minha vida. Olhei bem suas palmas e suas costas. Achei que elas se encontram, considerando a idade, até bem conservadas. Resolvi, então, fazer um retrospecto: logo que nasci, as mãozinhas ainda tenras apalpavam os seios de minha mãe, que me amamentaram, não sei durante quantos meses e, segurando-os saciado, adormecia. Depois, passaram a segurar a mamadeira e, em seguida, aprenderam a levar a comida à boca. Menino ainda, minha mãe reunia os filhos, à noite, antes de deitar, para as orações, ensinando-nos, a mim e minhas irmãs, a persignar-nos e a rezarmos. Persignar-me, continuei fazendo todos os dias, várias vezes, e a juntar as mãos em prece também, ainda agradecendo a Deus por tê-las firmes. A fase da infância era intercalada com uma pequena ajuda na bodega/oficina/indústria do meu pai, ajuda compatível com minha idade, principalmente a de fazer sacos com papel de embrulho em formas de madeira, dos mais diversos tamanhos, para o que a cola usada era feita, em casa mesmo, com goma e água fervida. Nos anos consumidos nas brincadeiras, em várias delas era indispensável a utilização das mãos, principalmente nos jogos de bater petecas, que eu mesmo confeccionava - batia com a força que tivesse, a fim de que elas subissem tanto ou mais do que as dos meus colegas contendores, a ponto de, ao terminar o divertimento, ficarem inchadas; ou, nas tardes de verão, em alçar aos ventos quentes mas cheirosos do Nordeste, os meus papagaios, que eu mesmo fazia, desdobrando o carretel de linha Corrente Zero, ou recolhendo-os quando atingiam o ponto mais alto, onde, às vezes, ficavam quietos, como que adormecidos. Em seguida vieram os anos de estudo (aliás, já haviam começado com os primeiros ensinamentos maternos), as aulas particulares, com o uso de palmatória, a seguir o primário e, cinco anos depois o ginasial (mais um lustro), uns treze anos, ao todo, aproximadamente, nos quais seu esforço maior (das minhas mãos) era escrever nos cadernos comprados nas livrarias, ou nos de papel almaço pautado, nas quais eram feitas as provas escritas mensais. Depois desse período, com o meu ingresso, por concurso público, no Banco do Brasil, em 1943, sua atividade passou a ser praticamente burocrática, com aumento das responsabilidades, preocupações e problemas, que Deus sempre me ajudou a solucionar com a noção do dever e da ética que aprendi com meus pais e o meu saudoso irmão José Augusto Rodrigues, mais velho do que eu dez anos e que foi meu paradigma.

Considerando – de certo modo retornando ao começo desta crônica – considerando que eu sempre senti uma atração especial pela terra, por tudo que brota dela com admirável exuberância, até pelos arbustos que germinam nas ruas, com suas florezinhas coloridas, mas pisoteadas com desprezo, servindo de pasto às vacas que, naquele tempo, tinham a liberdade de por elas vagarem, badalando seus chocalhos ao longo da noite; pelas árvores frutíferas – muitas das quais eu mesmo semeei - acompanhando com zelo e amor o seu crescimento, até florirem e frutificarem e eu ter o prazer especial de saborear-lhes os frutos. Quando menino, costumava cavar buracos no chão do quintal da casa onde nasci, usando as mãos com o auxilio de uma velha faca, para transplantar, com o máximo de cuidado, carinho e expectativa, as plantinhas cujas sementes vinham nas águas das chuvas de inverno; algumas, ficando presas na grama, germinavam, sementes as mais variadas - de manga, laranja, melancia, pitomba, limão, quaisquer que fossem. Mas, com que tristeza as via murcharem e desfalecerem. Lembro, também, que na época do verão apareciam, em revoada, os passarinhos da terra, os canarinhos amarelos e de belo canto. Beliscavam o chão à procura de alimento, mas, a qualquer susto, saiam em revoada para logo retornarem. Eu e outros garotos os capturávamos com um alçapão preso a uma gaiola, na qual costumávamos por um “chama”, só para ter o prazer de ouvi-los cantar e gorjear, ou, então, para torná-los canários de briga. Incluía nesse mister o eventual conserto das gaiolas, sua limpeza, renovação da água e da ração, para o que necessitava usar as minhas mãos.

Quando chegou o dia, porém, em que iniciei minha vida profissional, onde os instrumentos de trabalho principais eram as máquinas, de escrever e de calcular, a ponto de, nos primeiros tempos cansarem-me muito, não só as mãos, mas a minha cabeça também, sofri um pouco até acostumar-me. Eram funções burocráticas, que maltratavam mais a mente que as mãos à medida em que o exercício de funções mais elevadas ia assumindo. Decorreram muitos anos, mas, mesmo assim, elas foram preservadas das muitas rugas e outras marcas, a não ser aquelas que o tempo impiedoso inapelavelmente deixa, exceto quando se tem o cuidado de tratá-las com cremes apropriados e massagens, o que nunca fiz.

Sinceramente, eu não sei qual o órgão dos sentidos, com os quais Deus nos dotou, é o mais importante em nossa vida: se os olhos, ou ouvidos, o nariz, a língua ou as mãos: não sei, talvez o que nos faça mais falta à nossa sobrevivência e que um dia serão cruzadas sobre o peito do nosso corpo inerte, as mãos. Obrigado, Senhor, por tê-las ainda capazes de cumprimentar meus irmãos e amigos e de digitar textos, mesmo de pouco mérito, como este, em que me entretenho a passar o tempo.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 11/11/2011
Código do texto: T3330288