Tango - Parte III - Derrota

-Como ele faz isso?

Era a pergunta que se fazia um acuado Heitor, vendo o pianista transformar o piano numa máquina de fabricar estranhezas. Aquilo já não era mais o concerto de Tchaykowsky. Era um amontoado de frases destemperadas, quase insuportável aos ouvidos. Tão sedutoras e tão demoníacas, que certamente faria seu corpo ficar dolorido de tanto retesar os músculo. E suas entradas com o violino, quase atrasadas, eram apenas um sussurro ante a muralha que Tomás construía.

Heitor ainda não acreditava que aquele que violentava o piano com tanta ousadia e irresponsabilidade, era o mesmo homem que esteve na noite passada manchando seu corpo e condenando sua alma ao inferno.

Diante de sua chegada, como a de um demônio com o qual se vai fazer um pacto, só pôde engolir toda a sua vergonha, toda a sua auto-condenação, e polidamente, como todos, cumprimentá-lo com a cabeça. E seu olhar jamais denunciaria o pânico que sentia. Quase conseguiu visualizar a voz do pianista gritando a todos os presentes o que havia ocorrido. E seria linchado ali mesmo, levando trompas na cabeça e violoncelo nas costas.

Mas mesmo assim, Heitor sabia que esse tipo de coisa não se faz. Melhor pensar daquele jeito. Tomás não seria louco de expor a desconhecidos a aventura que o tornou um decaído.

Tomás.....Esse nome ainda soava algo estranho. O nome era quase uma sentença. Quase um dedo apontado a alguns milímetros de seu nariz. Nomes só têm mesmo peso, quando vêm acompanhados de uma carícia ou de uma punhalada dolorosa. E esse nome especificamente, significava a morte. A aniquilação. O estrondo final da sinfonia 6 de Mahler. Este sim, aquele que entendeu o que Heitor levou 38 anos para entender: cedo ou tarde, abrem-se as portas do céu, descem anjos julgadores e estes, não o levam para o céu. Mas apenas fazem você ver o tamanho do inferno que está abaixo de seus pés. Já estão todos condenados.

E definitivamente condenado a correr atrás daquele piano histérico, com seu violino indeciso, Heitor apenas desejava que ele se calasse, que o chão se abrisse engolisse a todos, e que todos fossem carbonizados. Desaparecessem da face da terra.

E estes pensamentos todos, conflitantes e pavorosos, percorriam a mente de um homem concentrado. Aquele que fora quase defunto, depois um ponto vermelho no meio de uma orquestra. Quem via a face de Heitor naquele momento, certamente veria um sério e quase melancólico, desinteressante e tedioso homem. Daqueles que não fazem nada. Que não crescem além de seus próprios limites.

Mas vê-se tudo por dentro dos corações, quando se investiga as almas que se revelam imediatamente, num arquear assimétrico de uma sobrancelha, ou no retesar quase imperceptível de um músculo da face.

E Heitor lia-se agora com frases desconexas, típicas dos poetas iniciantes. E sua leitura terminou quando o concerto terminou.

Tomas se levantou do piano, agradeceu aos companheiros músicos e foi aplaudido. Todos o adularam por algúm tempo. E enquanto isso, Heitor guardou seu violino na caixa, e saiu sorrateiramente. Queria ganhar a rua. Correr para a sua casa. Encontrar sua mulher. Mariane . Aquela que certamente era coisa mais certa de sua vida. Aquela a quem, apesar de um eventual nojo inexplicável, era a pessoa certa para aliviar de maneira cristã e decente, sua selvageria escondida.

Atravessou ruas, esbarrou em pessoas, sentiu que seu perfume já havia ido embora, e entrou num taxi. Quando se sentiu segura, olhou para trás, e felizmente, nenhuma mancha, nenhuma sujeira o havia seguido.

Estava a salvo.

Entrou em casa, bateu a porta atrás de si.

Quando percebeu o barulho, seu filho veio correndo em sua direção, quase caindo. Sua pequena e irônica imagem e semelhança.

-Papai...você trouxe chocolate????

-Oi queridão...não...não trouxe. Papai esqueceu...mas amanhã eu prometo que compro dois para você. Onde está a mamãe.?

-Lá fora.....

Heitor atravessou o corredor. Sombrio como se fosse quase assombrado e lá fora, sob o fim de sol da tarde, estava Mariane. Fumando um cigarro. Ele parou, respirou fundo, e sufocou como pôde seu desespero.

Pelo caminho, veio treinando uma forma aceitável de parecer...natural.

-Oi amor....

-Oi amor..que saudade....como foi ontem no seminário....você não voltou para casa....eu fiquei preocupada...

-Foi tudo bem...tive de dormir na casa de um amigo.

Ele não acreditou que teve forças para ser tão natural.....

-Você voltou a fumar????

-Me deu vontade hoje...na verdade, queria te dizer uma coisa...estou fumando já a alguns dias.

Como Heitor não havia percebido isso???

Ela continuou:

-Temos todos nossos pequenos segredos não é mesmo???

E ela riu de maneira estranha.....

Heitor sentiu como se um prego atravessasse seu estômago:

-Não tenho segredos. Não pra você....

-Será mesmo....você acha que sou idiota? Acha que eu acreditei nessa história de seminário que vira a noite???? No mínimo, você estava com uma dessas vadias. Pode me contar agora.....

Heitor nunca viu o rosto de Mariane desfigurado como naquele momento. Havia uma mistura de ódio, desespero, dor....era como se seu rosto fosse recordado por minúsculos sulcos....

E o coração de Heitor batia como se corresse água congelada em suas veias, ao invés de sangue. Não soube o que responder. Apenas balbuciou:

-Eu não acredito....

E o que Mahler dizia com sua sinfonia dos infernos, estava apenas começando.