MEMÓRIAS DA MINHA TERRA:
DA VINDIMA AO FABRICO DA AGUARDENTE BAGACEIRA
 
-  A Terra o dá, o homem o saboreia!  -

 
Dedico este texto número oitocentos aos meus amados pais.
A melhor e mais bela herança que meus progenitores irão
deixar-me será o amor e o respeito pela natureza e tudo que
dela provém. Ser-lhes-ei eternamente grata pelos grandiosos
ensinamentos que me transmitiram ao longo da vida.

 
 
Setembro e outubro findaram e, com eles, a azáfama e a alegria das vindimas. Das uvas se fez o vinho e este já se encontra bem guardado nos barris. E porque «nada se perde, tudo se transforma», agora há que aproveitar o que restou das uvas:  o bagaço, ou seja, a parte sólida que restou após o esmagamento dos frutos. Cascas, sementes e caules são levados para os alambiques. Com paciência e sabedoria serão transformados em aguardente bagaceira, também conhecida por cachaça.
Há alguns anos atrás, este líquido precioso, servia de «mata bicho» aos homens, antes de irem para a lida do campo, e era também utilizada para outros fins: digestivos - após as refeições;  terapêuticos - servia de desinfetante substituindo o álcool, aliviava a dor de dentes e no tratamento de gripes ou resfriados, aliada ao limão e ao mel (e como fazia transpirar e dormir!).

Porque o trabalho era muito e os braços poucos, por vezes o enorme amontoado de mosto seco (bagaço ou cardaço)  ficava algum tempo à espera de ser destilado. E era quando os dias começavam a ficar frios e chuvosos, quando os outros afazeres do campo diminuiam em virtude da época do ano, que se procedia à transformação do bagaço em aguardente. 
Finalmente uma manhã - na minha recordação, uma manhã em que o ar tinha já a frescura do outono - o alambique era instalado, o pote atestado e a fogueira acesa. O fogo ia sendo doseado, pois não podia ser demais nem de menos... e o garrafão colocado na ponta do cano ou cana. Às  vezes colocava-se uma espiga de trigo na ponta do cano e esperava-se que o precioso líquido começasse a pingar.

O alambique (ou pote) é um utensílio feito artesanalmente, em cobre, formado de partes móveis: um pote, onde é colocado o bagaço; uma caldeira e uma serpentina. As junções das peças são vedadas com uma massa cinzenta para evitar que o vapor passe para o exterior. O pote com bagaço é colocado por cima da fogueira. Com o aquecimento começam a ser libertados vapores que se espalhavam pela serpentina. Esta fica submersa em depósito com água fria. Em contato com ela, dá-se a condensação do vapor que passa para o estado líquido e vai sair por um tubo, caindo para dentro duma garrafa ou garrafão. Eis a aguardente vinícola, um produto alcoólico que resulta da destilação do bagaço de uva fermentado.
Este processo requer muita atenção por parte das pessoas que estão a manusear o alambique: a água do tanque por onde passa a serpentina tem que ser renovada frequentemente, pois vai aquecendo provocando paragem da condensação; a chama da fogueira também tem que ser controlada. Se for muito forte a aguardente ficará com um desagradável sabor a queimado; o teor alcoólico também tem que ser vigiado pois a certa altura o líquido resultante já tem fraco teor.

Eram agradáveis os momentos passados em volta do alambique. Os homens traziam banquinhos para se sentar e esperavam pacientes, enquanto as gotas de aguardente caíam uma a uma, límpidas como chuva de primavera. Degustava-se uma boa merenda, figos secos, nozes e amêndoas. E como era a época das castanhas, algumas eram assadas nas brasas. Depois chegava o momento da prova. Para a maioria em jejum. O copo passava de mão em mão e dele bebiam grandes, pequenos, e até as mulheres provavam a  aguardente nova.
Seguidamente era guardada em pequenos barris de madeira, para mais tarde ser degustada. Alguns produtores colocam a aguardente em barris de carvalho, madeira nobre, onde envelhece durante alguns anos, passando a designar-se aguardente velha. Adquire então uma coloração acastanhada, aroma característico e um sabor de grande suavidade.

Não sei se será a mais antiga, mas uma das primeiras recordações que guardo do vinho e da aguardente é a de vê-los jorrar dos barris para os garrafões e também para a taça.
A memória dos odores também ficou na minha lembrança: o bafo doce dos cestos de uvas na vindima, amontoados ao sol; o cheiro adocicado do mosto (bagaço); dos barris lavados, cheios de água para que as aduelas inchassem; o cheiro acre do fumo das mechas de enxofre, ardendo dentro dos barris para a desinfeção; o aroma leve do vinho novo ao ser trasfegado; o perfume da aguardente acabada de destilar; a fragrância das garrafas de bom vinho servidas nos dias de festa; a fragrância do vinho fino (Porto) combinado com o cheirinho das rabanadas, do pão-de-ló ou dos doces econômicos!


Todos os anos, após a vindima, meu pai fabrica a sua própria aguardente bagaceira, num alambique de cobre, para deleite da família e amigos. Ainda usa os métodos tradicionais e o saber, de experiência feito. De seus pais herdou o gosto por tudo o que diz respeito à terra e aos antigos e bons costumes. Orgulho-me de ter um pai carinhoso, homem trabalhador, nascido e criado na terra e que por ela sente tanta afeição.


Glossário:
Trasfegar: passar um líquido de um recipiente para outro.

Vinho fino: vinho do Porto. Também chamado de vinho tratado.

( *  Republicação)  


Leia, também: «MEMÓRIAS DA MINHA TERRA: AS VINDIMAS E O FABRICO DO VINHO»


Ana Flor do Lácio
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 10/11/2011
Reeditado em 12/01/2014
Código do texto: T3327621
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