Fogão a gás é um perigo...
Minha mãe nem nos ralhou, como seria de praxe, por termos entrado em casa correndo, direto da rua que se desmanchava em uma torrencial chuva já fazia mais de 2 horas. Apenas conjecturou: "E vocês nem limparam os pés...". Isso num tom que mais parecia uma contemplação. O turpor do momento não lhe permitia uma bronca mais severa, aos moldes costumeiros. Não que estivesse emocionada com o fato em si. Não, isso não era de seu feitio. Guardava as alegrias e as lágrimas para os momentos que delas fossem dignos. O alvoroço que se formava lá em casa era o que lhe preocupava. As pessoas iam chegando apesar da chuva e por lá iam ficando sob a alegação de não poderem sair naquela chuva, na mesma chuva que não lhes tinha impedido de ali chegar. A tarde ja começara a fechar-se e a cara de minha mãe também. Que diabos teria acontecido está se indagando o eventual e efêmero leitor. Não, não se tratava de uma tragédia. Aliás o motivo era bem oposto...
É que Naquele dia meu pai resolveu comprar uma novidade: Um fogão à gás. seis bocas mais forno e estufa. "A coisa mais linda do mundo", como dizia dona Ester, a vizinha do lado. Se para dona Ester que já tinha um bendito fogão há mais dois anos, era tudo aquilo, Para nossa familia a novidada era total: a vida na cidade ainda não estava muito bem resolvida e a adaptação parecia lenta. A maioria dos vizinhos já detinham o "bicho". Mas não como aquele. Ah! não mesmo. Meu pai era conservador, mas quando resolvia comprar algo, tinha que ser, senão do melhor, pelo menos de ótima qualidade.
Os comentários eram os mais diversos. "Se não tiver cuidado, ele pode provocar um incêndio". "... furar as panelas..", "queima as mãos da gente, que nem sentimos...". "Pior é o "bujão" (botija)! refletia seu Abel... "Ele explode e mata todo mundo num raio de 1 Km", "pena que não se pode usar panela de pressão: ela explode..." . E assim iam consumindo o ultimos raios do dia.
Minha mãe que nunca fora adepta de novidades e ainda mais com aquela barulheira toda lá no seu íntimo, tenho certeza, já escomungava meu pai, pelo ato impensado...
No dia seguinte ainda apareceu muita gente. E assim se deu por quase uma semana. E mesmo depois de um mes ainda aperecia "cá acolá" uma "visita" , para o fogão.
Um belo dia veio um colega de aula meu e foi direto: "como é que funciona?". "Niguém sabe" - repondi - "primeiro porque ainda não temos a botija e depois pelo fato de minha mãe não deixar ninguém se aproximar dele. Ela acha que ele pode expodir.... Depois é muito difícil comprar gás, além de que a comida produzida nessas coisa podem fazer mal". Outra vez passou lá na frente uma mulher que não conhecíamos e gritando recomendou: "Cuidado com esse fogão que a senhora comprou... pra ele explodir, só precisa estar inteiro".
Mais alguns meses e as variáveis adversas foram rompidas: minha mãe finalmente aceitou inaugurar o "bicho", meu pai comprou uma botija em uma conceituada loja perto da nossa casa. Claro que tinha de ser de origem segura.
"Agora vou poder mostrar para vocês o "pão de ló" de que tanto falei... deixa só eu aprender a mexer direito..." - animou-se finalmente minha mãe. A migração foi lenta: três ou quatro meses foram necessários para aposentar o velho fogareiro a carvão, ainda sob protesto de minha mãe que vivia reclamando que aquele fogo era muito frio e deixava muito a desejar; que já não bastava a mudança do velho a lenha lá do "mato" para o fogareiro, agora tinha que começar tudo de novo. Mas não teve jeito: o progresso foi mais forte e venceu... mas o forno... bem esse ficou pra depois, muito depois...
Já quase um anos depois quando voltava da aula, vi um amontoado de gente na minha porta. Entrei em casa com o coração pela boca.
Encontrei minha mãe com a cara de sempre e sem muita emoção. Então me disse: "Resolvi fazer o bendito bolo. A receita eu sabia de cor, desde os tempos em que morava com a minha madrinha, lá em Rio Branco. Que Deus a tenha. Mas quando acendi o forno... o bicho explodiu!"
Até hoje não se descobriu o verdadeiro motivo da explosão. A garantia já havia expirado há muito tempo. e o salário do meu pai ainda estava comprometido com as prestações do "bicho". de forma que passaamos alguns anos com um fogão de seis bocas, sem forno... Mesmo depois de comprado um fogão novo, foi preciso muito tempo prá minha mãe quebrar o novo tabu...