Tango - Parte II - Angústia
Heitor parou na calçada.
Não parecia que iria chover. Na verdade, parecia que a natureza hesitava em tomar um rumo. E se a chuva não vinha, também o sol na aparecia. Apenas espiava vez ou outra o que acontecia naquela terra de gente louca.
Os carros passavam de um lado para o outro, até o sinal se fechar. As pessoas começaram a atravessar, enquanto Heitor permanecia parado no mesmo lugar, sem coragem para seguir em frente.
Seus óculos escuros escondiam seu rosto do sol, que infelizmente vê tudo. E seu perfume recém borrifado, agora era enjoativo e nauseante. Novamente o suor voltava a ocupar seu rosto lívido...quase um defunto.
Mas aquele impulso estranho que carrega as pessoas de um lado para o outro o fez atravessar a avenida, quase sendo atropelado pelo carro que partiu assim que o sinal se abriu. E o susto o fez lembrar da realidade que aguarda a todos que têm de ser alguma coisa.
Caminhou desesperadamente, para chegar ao conservatório, sem olhar nenhum dos rostos que passavam. Era como se seu cheiro denunciasse que tipo de pessoa ele era. Que tipo de ser imperdoável ele havia se tornado na noite anterior, quando cedeu a um impulso deplorável que o afastou do mundo e das coisas corretas.
Ao nojo e à vontade de entender um pouco mais de tudo, somou-se a musiquinha extravagante de sua cabeça. Uma valsa de um compositor russo, que ele havia ouvido não sabia onde por uma violinista russa. Era o caos, o deboche, a vergonha....
Chegando no prédio meio decadente e tão sem charme, olhou por um tempo atrás de si antes de entrar, para ter certeza de que nada o havia seguido. Retirou seus óculos e subiu a escadaria já gasta.
Já estavam quase todos lá, para o ensaio da 6ª sinfonia de Mahler. Uma detestável peça com a irritante qualidade de ser insolúvel. Uma pergunta eterna. Parecia ironia daquele dia.
O maestro com cara de rabanete o acompanhou com os olhos, enquanto ele sentou em sua cadeira e retirou seu instrumento para fora. O olhar do homem-legume o oprimia e o fez ter certeza de que todos acompanharam sua trágica incursão no mundo esquerdo.
Aos poucos, todos chegaram e o rabanete condutor gritou:
-Do começo....
E assim foi por longas horas. Enquanto as passagens eram repetidas, crescia no estômago de Heitor uma repugnância tamanha por tudo, que não fosse sua bem educada conduta, teria se levantado, quebrado o violino na cabeça do rabanete e mandado todos á merda. Mas antes de tudo, era preciso engolir. Engolir todas as dores do mundo, até que fosse premiado, quem sabe um dia, com um infarto fulminante que o libertaria daqueles 38 anos de sofrimento e miséria.
E como a miséria sempre tende a crescer para submeter os homens ao ridículo de suas tragédias, Heitor viu que as coisas poderiam piorar. Mais que a sudorese, mais que o enjôo, e mais que a vergonha de seu corpo que se espojou em lençóis suspeitos.
O rabanete interrompeu o ensaio para fazer um anúncio. Daqueles difíceis de se acreditar.
-Senhores, acaba de chegar nosso pianista convidado. O talentoso Thomas Vasconcelos...
Um nome não diz nada. Até que este venha acompanhado de um rosto. Ou de uma lembrança.
E quando Heitor se virou para ver de quem se tratava, custou a acreditar.
Aquele que iria tocar o concerto de Tchaykowsky para piano, era justamente o homem que esteve com ele na noite anterior, e cujo nome nem sequer perguntou já que a vodka não permitiu tais intimidades.
E a face de Heitor que estava lívida como cera, ficou vermelha, um verdadeiro caos na circulação sanguínea.
O pianista, que também ficou estático ao ver sua face, só pôde olhar para o rosto branco e estranho á sua frente.
E Mahler, que já havia silenciado fazia tempo, novamente retornou com seu estrondo do apocalipse....