Cinema Paradiso
As manhãs no vale eram fantásticas.Levantava da cama,calca curta,cabelos arrepiados,grossos,de índio mesmo,passava uma água no rosto e corria prá cozinha.Cozinha grande de hotel. Olhava aquela paisagem abobalhado.O rio,majestoso,dono de tudo,brincava com as várzeas,ou a inundava ou a secava,e corria gostoso por entre elas. A Mantiqueira-lugar onde a névoa se espalha-imponente com formato de mulher e gigante. Pegava a caneca de alumínio e descia com o contentamento de crianca para o campo do Matuck.Era só descer o quintalzão do hotel. Cheiro de mangueiro,cheiro de gado,cheiro cheiroso,cheiro de ingenuidade. Caneca cheia,espumante do leite tirado na hora que sorvia com alegria inquietante.Acariciava o bezerro e voltava correndo para ir à igreja.Padre João Baptista me esperava.Êta padre bão! Missa rápida às 4,30 da manhã. Na hora do *suscipiae* era aquela dificuldade.Nunca decorei direito.Ele me olhava com o rabo dos olhos e pedia vinho.Servido o cálice,aí me vinha sono.Até ele limpar o cálice,arrumar o altar e dizer*Oremus*,eu ficava meio bambo.Acredito que Jesus sempre dá uma forca prá meninada.*Toque o sino ,ô moleque!*-terminou a missa.Ele prum lado,eu prum outro.Ia ajudar outras missas até às 10 hs.Ganhava uns trocados por isso e um café-com-leite maravilhoso vindo da casa dos redentoristas.Quando se é crianca tudo é maravilhoso ou triste.Corria prá casa almocar e ir pro Grupo Escolar Chagas Pereira.Êta coisa boa!Das 11 às 14 horas.Da.Aninha,Da.Conceicão,Da.Yolanda,Da.Silvinha,Da.Lea e muitas Donas e donas de um coracão de menino.Saúdo as senhoras todas! Me ajudaram a ser o caráter que hoje sou.Muito obrigado! E depois da escola? Ia jogar bola no campo da *Santa*,onde hoje é a Rádio Aparecida e uma porcão de tranqueiras,me desculpem,memórias de crianca não gostam de muita bagunca.Dedo estragado,às vezes sangrando pelo peso da bola capotão,mas satisfeito com a vida e corria pro Cine Aparecida,atrás da velha matriz.Fedia suor com terra,entretanto os anjos não queriam assim.Crianca tem que ter cheiro de crianca e pronto..Lá no cinema ia ajudar seo João(será esse o nome?) a desenrolar o filme da sessão das 19 horas.Os padres faziam a censura.Eu olhava por aqueles buracos quadriculares a platéia lá embaixo.Era a mesma de sempre.Um canhão ao meu lado aspergia uma luz muito forte,de cegar os olhos.E quando queimava o celulóide? Cheiro horrível,platéia xingando,sêo João tentando ajeitar.Púnhamos a fita numa espécie de pedra,cortávamos os pontos estragados e colávamos as partes.-*Roda o filme garoto!*.Tento lembrar o verdadeiro nome do sêo João.Não lembro.Então vou chamá-lo de Alfredo,como no filme.Pronto,basta,fica Alfredo para a eternidade.Ele chegava com a sua bicicleta,parava na banca de frutas,comia umas bananas e ia trabalhar.Nunca andei na sua bicicleta.Na banca de frutas passei noites e noites conversando com Rubinho,amigo da adolescência,vizinho de casa,o Hotel do Globo,atrás da velha Matriz.Onde estará sêo João ou Alfredo? Aquele condor que aparecia no comeco dos filmes me levou junto com ele para outras paragens.Saudades... *Água de beber,bica no quintal,sede de viver tudo.*-cancão de Milton Nascimento.