OS CACOS, COMO SE LIVRAR DELES?
- Foi você quem não quis mais me ouvir, você não quer mais me ouvir! - grita enquanto desce as escadas para pegar um copo de bebida.
Ouve os passos dele descendo a escada também. A discussão pelo jeito vai continuar.
Ela não quer mais ouvir, mas ele tem muito que falar e não vai deixar isso de lado. Chega até a sala e a vê sentada, agora acendendo um cigarro. A fumaça é a única coisa verdadeira que sai da boca dela nesse momento.
Não quero ser a vilã só porque você assim o decidiu. Se estamos neste barco afundando é porque você também deixou entrar água demais!
Ela o olha com raiva, mas a raiva é porque ela sabia que ele tinha razão. Razão suficiente para jogar isso na cara dela. Seu marido, agora seu maior inimigo.
Fizemos água, nós dois! Não estou sozinha neste barco assombrado. Mas eu ainda tenho forças para sair dele,nadando ou me afogando. Decido mais tarde a melhor forma de te largar!
 Me largar? Pergunta ele num grito. Não se esqueça de que já estamos separados há muito tempo. Só evitamos falar no assunto. A banheira transbordou para mim. Agora você se quiser que a enxugue. Não me interessa mais nada aqui!
Ela sente uma dor no peito ao ouvir essas palavras. O que ela esperava? Que ele lhe pedisse desculpas e tudo ficaria bem. Não é bem assim. São muitos anos de desafeto entre eles, muita mágoa acumulada, muito ressentimento a não poder mais. Estão os dois ali sozinhos apontando erros, gritando ofensas e digerindo um casamento que vai mal.
Quanto tudo começou nenhum dos dois sabe ao certo, apenas começaram a se estranhar, a ter pequenas rusgas e até chegar às ofensas. Tudo agora era motivo de briga, de discussão: é o café da manhã que está doce demais ou frio demais; e a casa que tem mais teias de aranhas do que qualquer outra coisa; e a comida que está requentada.
Mas ela também tem o seu lado para jogar na cara dele: as ferramentas enferrujadas e largadas em cima da mesa de vidro na frente da casa; a toalha jogada no banheiro; a roupa e o sapato largados pelos cantos.
Eles podem listar várias coisas que os irritam e com isso vão vivendo se esbarrando cada vez mais.
Só quero que você saia. Não dá mais nem para mim nem para você! Estamos nos maltratando, eu não aguento mais isso! Ela grita por fim jogando o copo de bebida em direção a ele, mas não o acerta.
Errou o copo mas acertou nas palavras. Ele se sente combalido, parece que vem lutando há muito tempo numa guerra que está longe de terminar.
Você está certa. Não dá mais para continuarmos assim. É melhor que eu saia desta vez.
Sobe as escadas para fazer uma pequena mala. Enquanto isso, ela chora sentada num canto da sala, pensando e chorando. Ele foi seu primeiro amor e talvez seja o último. Perderam muitas coisas juntos mas conquistaram muitas coisas também juntos. Seria esse o fim do amor. Cacos espalhados pela casa, alguns espalhados pelo chão e outros no coração.
Não, ela não quer que ele vá. Precisa dessas brigas, pensa. Mas e ele? Será que ele sente ainda alguma coisa por ela? Talvez não, e isso a atormenta ainda mais.
Ele desce com uma pequena mala. Ela ainda chorando no canto da sala não tem vontade de olhar, nem de falar e não quer fazer nenhum movimento.
Ele sai.
Será que um dia voltará? Ela espera que sim, mas agora ela tem muitos cacos para catar, precisa de tempo para fazer o que tem de fazer. Se livrar desses cacos: os caídos no chão é fácil é só jogar no lixo que amanhã o lixeiro os carregará.
Mas os internos como tirá-los? Como livrar-se deles? Esses estão enraizados, talvez nunca saiam.