Vamos fazer um filme
Mais uma coisa tenho a dizer sobre o período em que trabalhei no Hospital de Clínicas de Curitiba. Essa talvez não diga respeito especificamente aos hospitais. Foi em um deles, no entanto, que melhor pude perceber a situação. Bom. Já falei que um dos meus trabalhos era o de acompanhar a imprensa. Eles ligavam para a Assessoria de Marketing, diziam que queriam fazer uma matéria sobre algum problema de saúde, e pediam que a gente arrumasse um médico para entrevistar. Pois bem. Arrumávamos um médico, agendávamos a entrevista, a imprensa aparecia, e nós acompanhávamos o tempo inteiro – sabe como é, para não deixar que os jornalistas aprontassem alguma coisa.
Mas o que eu quero falar diz respeito apenas à televisão. De todos os meios de comunicação, a televisão é aquele em que menos tenho vontade de trabalhar. Prefiro o jornal, o rádio, a Internet e até mesmo a assessoria de imprensa – menos a televisão. Portanto, não faz o menor sentido que todos os meus familiares digam que um dia ainda me assistirão como repórter da Rede Globo – não assistirão. Porque não gosto de aparecer. E também pelas restrições à televisão que eu passei a ter depois de trabalhar em hospital.
Visualizem: décimo quarto andar do Hospital de Clínicas. Setor de medula óssea. O HC é referência em transplante de medula. Lembram do Narciso, aquele jogador do Santos? Fez o transplante lá. E de vez em quando algum caso de transplante comovia a mídia, a ponto de merecer uma matéria diretamente do hospital. E assim estava sendo feito. Eu acompanhava a equipe de televisão. Dali a pouco tempo, alguma enfermeira chegaria trazendo a nova medula – ou aquilo que viria a ser uma nova medula. Como estamos falando de televisão, a imagem é fundamental. Por isso, o câmera estava preparado para filmar esse momento simbólico: a chegada da nova medula. Até porque, a medu... ei, não foi a enfermeira que acabou de passar aqui? Foi! O câmera cochilou e a enfermeira passou trazendo a nova medula sem que ele estivesse filmando. Gênio. Foi então perguntar para a mulher se ela não poderia, por acaso, trazer de novo a medula. Ela aceitou. E então saiu da sala e tornou a entrar – fazendo cara de naturalidade. Dessa vez, o câmera não deixou escapar nada. E você, que assistia em casa, teve a impressão de que a filmagem aconteceu na hora exata. Registre-se que a repórter ainda protestou – disse que não gostava de teatro. Nem por isso o teatro deixou de acontecer. E de ir ao ar como a mais pura verdade.
Outro caso: aconteceu que um câmera – acho que repórter cinematográfico cai melhor – estava fazendo imagens de um corredor do Hospital, para ilustrar alguma matéria. Mas havia um problema: os corredores próximos estavam praticamente vazios. Não havia movimento algum. Qual a graça em se filmar um corredor vazio? Nem parece Hospital. O repórter cinematográfico foi então conversar com alguns médicos residentes e enfermeiras que estavam não muito longe dali. Perguntou se não tinha como eles fazerem o favor de cruzar o corredor de lá para cá, de sair de uma porta e entrar em outra, enfim: de criar uma cena de movimento para que ele pudesse filmar. Eles aceitaram. E começaram então a se mover para todos os lados, sempre simulando a maior naturalidade do mundo. O câmera, agradecido, pôde enfim concluir as suas imagens.
Eis tudo: telejornalismo nem sempre tem a ver com a realidade.