VIÚVA LOGRADA
Na verdade, o que se ouvia do corredor eram gritos destapados, provocando motim de funcionários correndo daqui para ali, como pessoas tangidas por uma fera perigosa. Os berros ganhavam amplitude, progrediam próximos da sala da Diretoria. Berros de mulher.
— Gente, cadê o diretor? A mulher quer o diretor!
Era a mocinha da secretaria. Desatinada, não se deu pela minha presença, exatamente onde compareço entre as oito e onze horas, todos os dias de todos os meses, exceto nas férias.
— É a Neuza Louca em crise. Vem quebrando tudo. Muito maluca. E não tem médico na urgência.
A Neuza era reconhecida por sua doença complexa. Sempre desacompanhada, dava entrada no Pronto Socorro acometida de crises que rodeiam a epilepsia, repetindo-se em intervalos cada vez menores. Faziam-na agressiva, impaciente e cheia de malquerência. Um tumulto, seu atendimento. Chegava pela hora da morte, entre gritos e blasfêmias, quando não em franca convulsão.
Quando socorrida, voltava a si, plena de remorsos. A medicação devolvia-lhe a serenidade da mulher negra e muito humilde, agora responsável pelo ambiente de ternura e compaixão instalado no hospital.
— Quero passar – berrava ela nesse dia. – Me larga. Eu preciso falar com o diretor.
Era cliente preferencial. O hospital lhe conferiu o destaque, habituado com a assiduidade do comparecimento tempestivo entre nós, os servidores.
Nesta vez, percebia-se o exagero dos berros desde o setor de emergência, invadindo o corredor até aqui, na administração. Era perto de dez horas da manhã; o hospital, fervendo de usuários, portanto havia se esgotado em sua capacidade de atender.
— O doutor Luis e o doutor Jorge entraram numa cesária de emergência — explicava a secretária. — Só restou o senhor.
Avistei a Neuza. Eu era o diretor.
Havia uma complicação a mais: a demora no atendimento favoreceu o desatino de esmurrar a vidraça de entrada; o antebraço direito jorrava jato de sangue, tingindo de "vermelho desespero" o chão, as paredes, os móveis da recepção. O povo corria de um lado para outro, protegendo-se de serem ensanguentados.
Dois porteiros mantiveram-na imobilizada sobre a maca, enquanto a enfermagem aplicou sedativos; eu e uma auxiliar entramos suturar a lesão. Sangrou profundo, e levou quinze pontos. Enfaixamos o braço com atadura e amarramos uma tipóia.
Já retornando à consciência, calma, agora vinha o remorso, a lamúria pelas desavenças da vida.
— Por que eu vim parar aqui? — perguntou sob o efeito sedativo.
— Neuza, você queria falar com o diretor... - explicou a enfermeira, ajudando-a recobrar os sentidos.
Tomava um soro com o braço sob contenção na maca. Essa posição aumentava a aflição da paciente. A enfermeira, ali, queria explicar os motivos que a prendiam na maca. Ela passou a chorar, esforçando-se para tapar o rosto com o braço ferido. Envergonhada.
Em seguida, numa cadeira de rodas e com muxoxo e desânimo, foi levada à enfermaria. A auxiliar queria consolar, explicava os benefícios da internação até se restabelecer.
— Preciso falar com o diretor — insistiu com a condutora da cadeira de rodas, mas já ia além.
No dia seguinte, voltei para a visita médica, priorizei a conversa com a Neuza.
Dentro de uns cinco anos, a conversa nunca foi além das referências aos seus sintomas, à cura de feridas, ao uso de medicamentos, um diálogo específico.
— Doutor, por que vim parar aqui?
— Outra crise, dona Neuza — adiantou a auxiliar, um pouco ríspida, um pouco complacente, enquanto retirava as faixas do antebraço suturado.
As crises relacionavam-se à irregularidade do uso de medicamentos. Acometida de convulsão, sofria quedas em locais esdrúxulos: em cima do fogão, na galeria de esgoto, na lama à margem da estrada... Um dos sinistros mais graves deu-se por queda da garupa da motocicleta que a levava após alta hospitalar. Outro acidente provocou sequelas acentuadas, quando teve queda dentro do tacho de sabão quente, produto de fabricação artesanal, para seu próprio sustento.
– Essa cicatriz foi um desmaio — recordou-se a auxiliar, indicando com a pinça de curativos o quelóide na maçã do rosto. — A polícia quem trouxe; tinha ido pagar um crediário, quando caiu em convulsão no guichê, em cima do vidro.
Internada e submetida ao tratamento e cuidados adequados, comportava-se docilmente, passiva e agradecida: "— Aqui sou tratada como gente." Satisfeita com pouco. Apenas remédios, refeições, banho, roupas pessoais e de cama, nada extraordinário. A pobre Neuza, sim, sentia-se no paraíso, enquanto revelava suas privações: "— No meu barraco, lá na chácara, não vejo nada disso; nem luz, nem banheiro, nem feijão, nem sobremesa..."
"— Mas, em casa tem gente bonita, Neuza, como o doutor que sempre te atende?" — perguntei certa vez, numa brincadeira de mau gosto. Ela sabia que era descaso, mas rebateu com lástima: "— Em casa, só tenho os pestes dos filhos, uns marmanjos imprestáveis."
— Quero alta, doutor — disse ela, convicta do pedido.
O ferimento do antebraço apresentava boa recuperação nesse primeiro dia após a sutura, prometendo restabelecer-se sem complicações. Entretanto, a Neuza não dispunha do mínimo necessário para prosseguir tratamento em domicílio. A auxiliar deu-se o direito de advertir com veemência, apontando para a paciente uma pinça em riste:
— Em casa, dona Neuza, a senhora sequer toma os comprimidos da epilepsia, quanto mais fazer os curativos.
— Se eu não for, aqueles imprestáveis acabam com tudo o que é meu.
Sempre com essa alegação, alguma justificativa para comparecer em casa, logo solicitava alta médica ao sentir branda a epilepsia. Comum encontrá-la já no corredor da enfermaria, vestida para sair. "—Vou embora hoje, doutor — avisava. — Você vai me dar alta — prescrevia."
A assistente social há muito informara, Neuza Louca vive sozinha numa casa espandongada. Um local afastado da cidade, região de pequenas chácaras, sem eletricidade, nem água tratada, nem esgoto, nem linha de ônibus... Não recebe vizinho, dispensa favor, sustenta gatos, cachorros e galinhas. Só.
— Por que seus filhos acabam com tudo que é seu, Neuza? — indaguei, prevendo importância naquela preocupação da proprietária de pouquíssimas posses.
— Porque ninguém presta — respondeu com ira e desabafo.
Os filhos que ela mal considerava, também nunca foram vistos acompanhando a mãe nos atendimentos de saúde. Salvo serem extremamente ocupados em seus afazeres, aqui eram omissos e ingratos, no mínimo.
— Este ferimento exige mais internação, Neuza. Não posso lhe dar alta hospitalar.
— O advogado e aqueles vadios querem roubar tudo o que é meu. Não vou deixar; tenho que guardar minha casa.
Lágrima descia em sua face negra e escavada. Pobre mulher comprimia a seiva da dor com o dorso da mão. O rosto envergonhado para a parede, os punhos cerrados, vivia a explosão da mágoa acumulada ao longo da triste sina. O choro desnudava a tristeza provinda em casa. Fustigada por maus tratos da própria gente, libertava-se para expor as chagas da alma, como há pouco se retiraram as ataduras da ferida do braço. No braço negro, magro, eis a ferida costurada, mostrando o traço na pele, caminhos dolorosos através do qual a lâmina de vidro lhe cortara há um dia. Os curativos fariam cicatrizar-se. Talvez remanescesse cicatriz tão feia e saliente como o quelóide mantido na maçã do rosto. Porém, ainda na alma, quanto se ocultam feridas e cicatrizes, apenas aparentes na doença neurológica?
— Dois filhos, e nenhum para valer de nada, doutor. Vagabundos por cima de mim, e ainda me roubam o pouco que tenho. Isso foi no inventário, quando fiquei viúva. Ele, meu marido, era o padrasto dos meninos. Vieram depois e forçaram assinar um papel com o advogado; agora dizem que o direito da chácara é deles. Querem me jogar na rua.
Concluído o curativo, prescrevi a medicação diária para a Neuza, depois a consolei e não cedi com a alta solicitada. No posto de enfermagem, envolvi a assistente social no caso. Sugeri recorrer à polícia.
O choro de desabafo da Neuza comoveu a enfermaria. As pacientes vieram prestar consolo. Uma, palavra de conforto. Outra, um conselho. Mas, no geral, todas demonstravam indignação pelos filhos ingratos.
— Depois não descobrem porque a mulher é louca — explodiu uma entre elas, companheira de quarto que tinha pouca coisa a dizer.
*Crônica reunida no livro "O Próximo!".
Na verdade, o que se ouvia do corredor eram gritos destapados, provocando motim de funcionários correndo daqui para ali, como pessoas tangidas por uma fera perigosa. Os berros ganhavam amplitude, progrediam próximos da sala da Diretoria. Berros de mulher.
— Gente, cadê o diretor? A mulher quer o diretor!
Era a mocinha da secretaria. Desatinada, não se deu pela minha presença, exatamente onde compareço entre as oito e onze horas, todos os dias de todos os meses, exceto nas férias.
— É a Neuza Louca em crise. Vem quebrando tudo. Muito maluca. E não tem médico na urgência.
A Neuza era reconhecida por sua doença complexa. Sempre desacompanhada, dava entrada no Pronto Socorro acometida de crises que rodeiam a epilepsia, repetindo-se em intervalos cada vez menores. Faziam-na agressiva, impaciente e cheia de malquerência. Um tumulto, seu atendimento. Chegava pela hora da morte, entre gritos e blasfêmias, quando não em franca convulsão.
Quando socorrida, voltava a si, plena de remorsos. A medicação devolvia-lhe a serenidade da mulher negra e muito humilde, agora responsável pelo ambiente de ternura e compaixão instalado no hospital.
— Quero passar – berrava ela nesse dia. – Me larga. Eu preciso falar com o diretor.
Era cliente preferencial. O hospital lhe conferiu o destaque, habituado com a assiduidade do comparecimento tempestivo entre nós, os servidores.
Nesta vez, percebia-se o exagero dos berros desde o setor de emergência, invadindo o corredor até aqui, na administração. Era perto de dez horas da manhã; o hospital, fervendo de usuários, portanto havia se esgotado em sua capacidade de atender.
— O doutor Luis e o doutor Jorge entraram numa cesária de emergência — explicava a secretária. — Só restou o senhor.
Avistei a Neuza. Eu era o diretor.
Havia uma complicação a mais: a demora no atendimento favoreceu o desatino de esmurrar a vidraça de entrada; o antebraço direito jorrava jato de sangue, tingindo de "vermelho desespero" o chão, as paredes, os móveis da recepção. O povo corria de um lado para outro, protegendo-se de serem ensanguentados.
Dois porteiros mantiveram-na imobilizada sobre a maca, enquanto a enfermagem aplicou sedativos; eu e uma auxiliar entramos suturar a lesão. Sangrou profundo, e levou quinze pontos. Enfaixamos o braço com atadura e amarramos uma tipóia.
Já retornando à consciência, calma, agora vinha o remorso, a lamúria pelas desavenças da vida.
— Por que eu vim parar aqui? — perguntou sob o efeito sedativo.
— Neuza, você queria falar com o diretor... - explicou a enfermeira, ajudando-a recobrar os sentidos.
Tomava um soro com o braço sob contenção na maca. Essa posição aumentava a aflição da paciente. A enfermeira, ali, queria explicar os motivos que a prendiam na maca. Ela passou a chorar, esforçando-se para tapar o rosto com o braço ferido. Envergonhada.
Em seguida, numa cadeira de rodas e com muxoxo e desânimo, foi levada à enfermaria. A auxiliar queria consolar, explicava os benefícios da internação até se restabelecer.
— Preciso falar com o diretor — insistiu com a condutora da cadeira de rodas, mas já ia além.
No dia seguinte, voltei para a visita médica, priorizei a conversa com a Neuza.
Dentro de uns cinco anos, a conversa nunca foi além das referências aos seus sintomas, à cura de feridas, ao uso de medicamentos, um diálogo específico.
— Doutor, por que vim parar aqui?
— Outra crise, dona Neuza — adiantou a auxiliar, um pouco ríspida, um pouco complacente, enquanto retirava as faixas do antebraço suturado.
As crises relacionavam-se à irregularidade do uso de medicamentos. Acometida de convulsão, sofria quedas em locais esdrúxulos: em cima do fogão, na galeria de esgoto, na lama à margem da estrada... Um dos sinistros mais graves deu-se por queda da garupa da motocicleta que a levava após alta hospitalar. Outro acidente provocou sequelas acentuadas, quando teve queda dentro do tacho de sabão quente, produto de fabricação artesanal, para seu próprio sustento.
– Essa cicatriz foi um desmaio — recordou-se a auxiliar, indicando com a pinça de curativos o quelóide na maçã do rosto. — A polícia quem trouxe; tinha ido pagar um crediário, quando caiu em convulsão no guichê, em cima do vidro.
Internada e submetida ao tratamento e cuidados adequados, comportava-se docilmente, passiva e agradecida: "— Aqui sou tratada como gente." Satisfeita com pouco. Apenas remédios, refeições, banho, roupas pessoais e de cama, nada extraordinário. A pobre Neuza, sim, sentia-se no paraíso, enquanto revelava suas privações: "— No meu barraco, lá na chácara, não vejo nada disso; nem luz, nem banheiro, nem feijão, nem sobremesa..."
"— Mas, em casa tem gente bonita, Neuza, como o doutor que sempre te atende?" — perguntei certa vez, numa brincadeira de mau gosto. Ela sabia que era descaso, mas rebateu com lástima: "— Em casa, só tenho os pestes dos filhos, uns marmanjos imprestáveis."
— Quero alta, doutor — disse ela, convicta do pedido.
O ferimento do antebraço apresentava boa recuperação nesse primeiro dia após a sutura, prometendo restabelecer-se sem complicações. Entretanto, a Neuza não dispunha do mínimo necessário para prosseguir tratamento em domicílio. A auxiliar deu-se o direito de advertir com veemência, apontando para a paciente uma pinça em riste:
— Em casa, dona Neuza, a senhora sequer toma os comprimidos da epilepsia, quanto mais fazer os curativos.
— Se eu não for, aqueles imprestáveis acabam com tudo o que é meu.
Sempre com essa alegação, alguma justificativa para comparecer em casa, logo solicitava alta médica ao sentir branda a epilepsia. Comum encontrá-la já no corredor da enfermaria, vestida para sair. "—Vou embora hoje, doutor — avisava. — Você vai me dar alta — prescrevia."
A assistente social há muito informara, Neuza Louca vive sozinha numa casa espandongada. Um local afastado da cidade, região de pequenas chácaras, sem eletricidade, nem água tratada, nem esgoto, nem linha de ônibus... Não recebe vizinho, dispensa favor, sustenta gatos, cachorros e galinhas. Só.
— Por que seus filhos acabam com tudo que é seu, Neuza? — indaguei, prevendo importância naquela preocupação da proprietária de pouquíssimas posses.
— Porque ninguém presta — respondeu com ira e desabafo.
Os filhos que ela mal considerava, também nunca foram vistos acompanhando a mãe nos atendimentos de saúde. Salvo serem extremamente ocupados em seus afazeres, aqui eram omissos e ingratos, no mínimo.
— Este ferimento exige mais internação, Neuza. Não posso lhe dar alta hospitalar.
— O advogado e aqueles vadios querem roubar tudo o que é meu. Não vou deixar; tenho que guardar minha casa.
Lágrima descia em sua face negra e escavada. Pobre mulher comprimia a seiva da dor com o dorso da mão. O rosto envergonhado para a parede, os punhos cerrados, vivia a explosão da mágoa acumulada ao longo da triste sina. O choro desnudava a tristeza provinda em casa. Fustigada por maus tratos da própria gente, libertava-se para expor as chagas da alma, como há pouco se retiraram as ataduras da ferida do braço. No braço negro, magro, eis a ferida costurada, mostrando o traço na pele, caminhos dolorosos através do qual a lâmina de vidro lhe cortara há um dia. Os curativos fariam cicatrizar-se. Talvez remanescesse cicatriz tão feia e saliente como o quelóide mantido na maçã do rosto. Porém, ainda na alma, quanto se ocultam feridas e cicatrizes, apenas aparentes na doença neurológica?
— Dois filhos, e nenhum para valer de nada, doutor. Vagabundos por cima de mim, e ainda me roubam o pouco que tenho. Isso foi no inventário, quando fiquei viúva. Ele, meu marido, era o padrasto dos meninos. Vieram depois e forçaram assinar um papel com o advogado; agora dizem que o direito da chácara é deles. Querem me jogar na rua.
Concluído o curativo, prescrevi a medicação diária para a Neuza, depois a consolei e não cedi com a alta solicitada. No posto de enfermagem, envolvi a assistente social no caso. Sugeri recorrer à polícia.
O choro de desabafo da Neuza comoveu a enfermaria. As pacientes vieram prestar consolo. Uma, palavra de conforto. Outra, um conselho. Mas, no geral, todas demonstravam indignação pelos filhos ingratos.
— Depois não descobrem porque a mulher é louca — explodiu uma entre elas, companheira de quarto que tinha pouca coisa a dizer.
*Crônica reunida no livro "O Próximo!".