Tango - Parte I
Demorou para amanhecer.
Foi um longo tempo passado entre a meia noite e as seis da manhã. Um tempo em que o chão foi pisoteado sem dó pelos pés a um tempo alvoroçados e depois apenas acostumados ao vai e vem incessante. Calma. Agora restava apenas a calma. E a fumaça do cigarro que Heitor expelia.
Uma noite tão longa assim, só mesmo quando do nascimento de seu primeiro filho. Quando desesperado, rezava sem saber ao menos o que significavam aquelas palavras. Nem se havia alguém ouvindo o clamor destemperado. Mas enfim, deu certo. Seu filho nasceu junto com a manhã do dia 3 de abril. Mesmo com todas as possibilidades de que aquela vida jamais viesse a ver o mundo dos homens.
Agora, era uma situação diferente. A espera era mais torturante. E por isso mesmo, acendia outro cigarro, e nervosamente, olhava seu frasco de Eau Sauvage pela metade. Assim como sua vida. O perfume se agarrava em suas mãos, quase como uma praga materna e a partir daquele instante, decidiu trocar de perfume depois de longos anos.
Pensou em Mariane, aquela que trouxe ao mundo o que havia de mais importante em seus dias. Sentiu vergonha dela. Sentiu medo. Sentiu um nojo e uma culpa tão grandes, que gostaria de se atirar do oitavo andar, como já fizera um amigo seu. Mas não havia coragem para isso. Havia sim um enorme buraco no estômago. Um filho para criar e uma incerteza sobre tantas coisas, que parecia que o mundo havia o arrastado até ali apenas para lhe dar uma rasteira. Apenas para acordar o que dolorosamente foi sufocado sob uma verdade única proferida por seu pai: Seja normal.
O cigarro se acabou lentamente. Nem havia mais espaço no cinzeiro para mais um. Arremessou então pela janela. Irresponsabilidade. Mas naquela altura, quem mais se importaria com isso?
O sol já começava a queimar a terra, e podia-se de longe ouvir o barulho dos carros engarrafados, das crianças que corriam pelo corredor do prédio e alguma dessas besteira musicais que os adolescentes tanto gostam. E cada barulho, era uma estocada de medo no estômago de Heitor. Era como se estivesse prestes a ser pego em um flagrante terrível. Seria julgado, condenado, talvez queimado. Seu nome seria arrastado na lama. Seria banido das mentes de seus amigos.
E a cada pensamento, seus olhos se esbugalhavam, o suor frio lhe percorria a face. Seria um criminoso da pior das espécies.
Da cama agora iluminada pelo sol, surgiu a voz de todos os pesadelos que ele teve sem nem ao menos dormir. Era a voz de quem esteve tão perto, mas tão perto, que não se poderia separar em duas unidades.
-Bom dia....
Nunca um bom dia soou tão alarmante e desesperador como aquele. Nunca uma voz foi tão demoníaca e tão horripilante.
Ao se voltar para a cama, caso ainda não acreditasse, Heitor teve a certeza absoluta: outro igual a ele esteve...e estava ali.
Imóvel como quem custa a crer na evidências, apenas teve forças para dizer um bom dia entre os dentes.
O sol agora era encoberto por nuvens densas e tempestuosas, prestes a desabar sobre a terra e inundar ao mundo com suas águas revoltas, para lavar os pecados dos homens.
A voz retorna:
-Tenho de ir embora. Poxa vida....já está tarde. Por que não me acordou???
Heitor estava ainda imóvel, como um grande boneco de cera, custando a crer no que suas lembranças insistiam em dizer que fizera na noite passada. E não conseguindo olhar nos olhos daquele que estava em sua cama, apenas movimentou a cabeça para o lado da janela e respondeu:
-Não sabia que tinha que acordar cedo. Desculpe........
A partir daquele momento, passou ver que a morte deveria ser algo próximo daquela situação. Sua esposa, seu filho, sua família, seus amigos...passaram todos afazer parte de um outro mundo...que ele, inconsequentemente acabara de afastar de si para sempre.
Morria o antigo Heitor...o violinista cristão e trancafiado em seu terno escuro, que conseguiu conter seu impulsos animalescos até onde pôde. Até o momento em que a vodka e a sensação de liberdade da noite anterior lhe disseram que não havia nada de errado em ser quem ele realmente era. Mas e quando não se sabe ser de outra forma? Heitor pressentiu que teria de aprender....
E os momentos seguintes foram velozes como a felicidade. Heitor se vestiu para a segunda feira, e o homem que esteve em sua cama também.
Quando saiu, deu um beijo em Heitor. Como que marcando com ferro em brasa a alma de quem tinha duas escolhas...
O dia prometia ser algo tenebroso...