NOITE, SÓ NO COMEÇO



—Boa-noite! — eu disse efusivo, provocante, saudando a auxiliar de enfermagem à entrada da Emergência.

Súbito, ela se melindrou:

— Xi, quem me aparece?! "Boa-noite" de que jeito, tendo você por aqui? Isso eu duvi-de-o-dó. Seu nome na escala de plantonistas, amiguinho, se chama "Doutor Pé-Frio"!

Não era brincadeira da auxiliar, minha companheira de longas noites de plantão, muito trabalho e estresse. No hospital, pesava sobre mim o estigma de "azarão": os plantões eram cercados de maus presságios. Eu próprio me dera conta dessa particularidade. Entrava no pronto-socorro, já as meras criaturas do acaso convergiam para lá com a gama de gravidade possível.

—Vim substituir o plantonista – desculpei-me retribuindo a ironia: – Apenas quero uma noite de fortes emoções aqui na Emergência.

— Emergência! — anunciou a recepcionista, trazendo a um tempo a ficha de atendimento e o paciente ensangüentado.

Entrou caminhando, mantinha sinais conscientes. Sem ajuda, deitou-se na maca. Era um motoqueiro.

Prestativa, a auxiliar de enfermagem correu com o protocolo. Continha o riso de deboche, prevendo toda minha reação dali por diante a respeito do "motoqueiro".

— Motoqueiro, é?

Olhando para mim, assentiu com a cabeça, enquanto tomava a veia no braço do paciente. Continuaria observando minha reação diante do caso.

Vesti luvas, mirando para o sujeito. O sangramento provinha do supercílio ferido. Também mantinha a mão direita envolta pela camisa quase ensopada de sangue.

Suspirei fundo: outro nome para engrossar as estatísticas de acidente de trânsito. E prossegui dizendo comigo mesmo. "A partir de agora, outro cidadão que viverá às expensas do governo por período indeterminado. Quantos dias de assistência médica? Procedimentos cirúrgicos, remédios, exames de imagem, tratamento de fisioterapia..."

— É, meu amigo!... — eu acabei soltando esse suspiro de desalento, mas me detive nesse ponto, certo de que não era o primeiro, nem seria o último motoqueiro a viajar por essa via crúcis.

A auxiliar limpava os ferimentos da mão, despejando soro fisiológico e esfregando gaze com uma pinça. Sabia de cor o meu rosário de palavras, enquanto executaria o procedimento médico.

Entretando, para espanto da auxiliar, nada mais discorri sobre o óbvio. A noite parecia me pedir ponderação, medir os gestos, conter o clamor que os plantões incitam. " — Em casa, caro motoqueiro, quanto transtorno a partir de agora?!..."

"Tanto assisti em meus dias de médico às múltiplas dores desses acidentados e seus familiares, a súbita interrupção dos sonhos e afazeres, as suas mutilações e longos períodos de enfermaria, as suas sequelas e eterna invalidez!..."

— Cuidado com esse olho — advertiu o motoqueiro, desviando a cabeça sob o campo de sutura.

— Mantenha a cabeça quieta — avisou a auxiliar, reposicionando-o sobre a maca. - O doutor precisa fazer antissepsia no supercílio - completou.

Apanhei a seringa, infiltrei anestésico local. O motoqueiro reagiu. A auxiliar contra-reagiu:

— Preciso segurar sua cabeça de marmanjo, para o doutor dar os pontos, Carlos?

Estranhei que a auxiliar soubesse que o motoqueiro tinha esse nome. Agradeci sua assistência, só com a expressão da rima da boca.

"Tanto assinei declaração de óbito de jovens, e tanto presenciei concorridos cortejos que levaram ao cemitério estes jovens, e tanto constatei que se formaram novos cortejos e conduziram dentre eles outro jovem à sepultura!..."


Instalei o fio de mononylon no porta-agulha, tomei uma pinça dente-de-rato, executei o primeiro ponto de sutura.


— Cuidado com esse olho — recomendou pela segunda vez.

"A quem devemos a culpa pelo descontrole do trânsito nas nossas vias de tráfego? O fabricante de motocicletas? Os revendedores e suas estratégias de preço facilitado? O condutor desse veículo, sempre audacioso, apressado e confiante? O governo, sempre o governo? Ora, o governo leva culpa de tudo errado em nossas vidas, porque não atribuir aos políticos toda a avalanche de inválidos e mortos por conta desses acidentes? Aplicação de verbas para o melhor tráfego: educação, pavimentação, sinalização, legislação, fiscalização?..."

Cinco pontos próximos um do outro, a hemorragia já se estancou, a pálpebra já se restituiu em seu local de nascença.

A auxiliar despejou sobre minha pinça a solução antiséptica. Meus pensamentos divagavam a respeito dos acidentes, especificamente os de trânsito. Mesmo assim, automático, sei que as mãos executavam as atividades sobre o homem ferido. Suavemente, limpava a área suturada.

— Meu olho, cuidado!

"Nenhum de nós, o cidadão, é culpado pelos males decorrentes das motocicletas. Em nosso cotidiano, as motocicletas (vilãs maiores no quesito sinistros) são o mal necessário. Proporcionam economia financeira e de tempo. Apenas esses atributos colocam-nas predominantes em nossas ruas, saindo à frente dos automóveis, bicicletas e pedestres. Alguns de nós pilotamos mal, não importa. Outros conduzem com excessos de alcoolismo ou outras substâncias, ainda não importa. A imprudência integra a natureza do homem, é razoável. Imaginar que o infortúnio só ocorre para o próximo, isso ainda é do ímpeto humano."

Ia aplicar o curativo sobre o olho, quase um tampão, certamente excesso de gaze e desmazelo com a estética do paciente, mas ele me deteve incisivo:

— Cuidado com meu olho. Deixe destapado, por favor.

"Pobre miserável! Não avalia o saldo desta noite, quando aqui está sóbrio e gozando domínio de todos os seus movimentos do corpo. Quantos aqui deram entrada entre a vida e a morte! Quantos não responderam à avaliação do nível de consciência; outros com fraturas múltiplas, expostas; outros com trauma grave de crânio, abdome ou tórax, tudo demandando urgência cirúrgica! Está assim tão dono de si, e certamente se trata de outro acidentado que se isenta de qualquer culpa."

— Carlos, terminou. Agora pode se sentar — orientou a auxiliar, oferecendo-lhe a cadeira junto da mesa médica.

— E os meus dedos? — perguntou decepcionado, olhando para a mão mutilada, limpa e coberta pelo curativo.

A auxiliar virou-se para mim, como aguardasse silenciosa autorização para responder o que seria de minha alçada. Os ferimentos não o colocavam sob risco de vida, resposta que me dirigi. Três dedos muito danificados, as extremidades esmagadas e as unhas pendidas. Ônus dessa escolha, justificativa de comodidade ou alternativa restante, o fato é que motociclista sempre fica com o lamentável saldo: sequelas muitas vezes permanentes.

— Um ortopedista virá no plantão avaliar — avisei.

— Amputação, doutor? — indagou.

Entreguei à auxiliar a prescrição para a enfermaria. Depois da amputação, curativos e mais, receberia alta do médico e compareceria no serviço de indenização do governo. Um jovem que, desde hoje, via a mudança de planos e o desconforto de jamais produzir tal quando se dispunha de integridade física. Sonhos acidentados, quantos nessa equivalência, anônimos amontoados neste País?

— Vamos, Carlos? Internação para a cirurgia ortopédica — completou a auxiliar, indicando que devia seguir para o seu leito hospitalar. O paciente quis ganhar tempo:

— Risco de ficar cego, doutor?

Era uma lesão superficial acima do olho. Nada grave. Havia sido bem tratada aqui no pronto socorro. Ficará uma cicatriz quase imperceptível.

— Problema são os dedos, meu caro — respondi, para que se detivesse no maior prejuízo.

— Preocupo, doutor, porque esse é o olho bom. O outro, a prótese não mostra que sou cego.

Nesse período envolvido com o motoqueiro, outras duas ocorrências aguardavam atendimento. Apressei a enfermeira para atender antes a criança que pulou na cama até cair. Pequeno corte na testa, mas a mãe impacientava-se forçando a toalha sobre o ferimento do filho.

— O velho que o genro bateu, peça para aguardar. Logo, atendo.

Não esquecia do motoqueiro: final feliz? Pelo menos, a regra fica por conta das gravidades extremas, situação de que se salvou este cego de um olho (mas motociclista, sim, senhor).

—Vão-se os dedos, ficam os olhos; um bom e outro prótese!

A auxiliar de enfermagem viu que eu falava comigo mesmo; por isso só me consolou com esse olhar companheiro e compreensivo de longas noites de plantão, muito trabalho e fortes emoções.

— Pé frio — falou graciosa, quase segredado.

— O que a senhora disse? — perguntou a jovem mãe, deitando na maca a criança com machucado na testa.

— Nada, não, mãe. Nada, não — respondeu, apanhando no armário a caixa de pequena sutura; ria só com ela, vingativa com os meus plantões.

A criança virou chorar, esperneando na hora dos primeiros curativos. Noite apenas no começo; prometia emoção.


* Crônica reúnida no livro "O Próximo!"

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 06/11/2011
Reeditado em 16/04/2013
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