Lampejos Existenciais

Existem fases nas quais nos encontramos vazios para escrever. As idéias não surgem e o monitor e o teclado parecem nos dizer: “estamos esperando”.

Nessas ocasiões, tenho uma receitinha que tem dado certo: “desligue o computador e saia”.

Tem dado certo, pois sempre que utilizo tal procedimento, ocorre de assistir algo, ou de ouvir a narrativa de alguma experiência, que fico empolgado para registrá-la.

Pois é, depois de longa espera e sem conseguir atender ao teclado e ao monitor, dirigi-me à praça central da pequena cidade e aproximei-me de uma tenda, que protege os assíduos jogadores de sueca, buraco, dama e xadrez da chuva e do sol.

Como existem já parcerias estabelecidas, é costume dos estranhos ao ambiente sentarem-se em cumprido banco de madeira maciça, que fica em uma das laterais da tenda.

Sentei ao lado de um senhor com a pele tatuada daquelas manchas conhecidas como senis, que indicavam já ter alcançado os oitenta.

Nem acabara de sentar, com a espontaneidade e franqueza, que caracterizam as crianças e os idosos, avisou-me: “se queres parceiro, não conte comigo, estou aqui para prosear”.

Não me contive e, ao riso solto, apresentei-me e disse-lhe ser “todo ouvidos”.

Confidenciou-me que gosta de prosear, pois seus 84 anos bem vividos lhe haviam convencido de que deveria passar para outros algumas experiências, consideradas riquíssimas.

Para entusiasmá-lo a narrar sem restrições, argumentei que, apesar de já ter passado dos setenta, gostaria de, certamente, aprender com sua narrativa.

Com a palavra, ou melhor, com a voz da experiência, Cielomar, baiano, filho de negra do recôncavo baiano com imigrante italiano da Basilicata.

Creio que sabes sobre estalos, centelhas, lampejos existenciais que, infelizmente, só ocorrem ocasionalmente. Apesar de ocasionais , nos ensinam para sempre.

Infelizmente, só me ocorreram dois, até agora. Vou te contar os dois.

O primeiro ocorreu, quando estava no esplendor da minha juventude. Meus dezessete aninhos dourados.

Nessa fase da vida, dirigidos pela vaidade, passamos, como Narciso no lago, algum tempo em frente ao espelho. Certa vez ao pentear-me e arrumar com muito cuidado o topete, levei o maior susto que um jovem macho poderia levar. Percebi, com muita clareza, que no meu rosto existiam, de modo marcante, traços femininos.

Como rato foge do gato, fugi dessas imagens e prorroguei por muito tempo o ensinamento desse estalo existencial.

Depois de muito tempo, observando meu filho que, na época, vivia seu décimo ano, percebi o mesmo e fui tomado por preocupações até a centelha de entendimento correspondente surgir. “Nossa natureza é polar: lobo e cordeiro; bem e mal; luz e trevas; macho e fêmea e tudo o mais que possamos imaginar”. Ou seja, minha surpresa e meus receios não tinham razão, pois temos a polaridade macho e fêmea.

O segundo já estava na idade adulto, formado profissionalmente e noivo. Vivia meu vigésimo sexto ano.

Nessa época residia em São Paulo e trabalhava numa empresa que prestava serviços em outros estados. Estava prestando serviços no Rio.

A empresa para qual trabalhávamos ficava localizada na Penha e fornecia refeições aos seus colaboradores.

Apesar de não existir diferença de cardápio, existia diferença de refeitório. O nível operacional almoçava num refeitório maior, o nível de supervisão em outro e os gerentes e a Diretoria noutro.

O mestre da cozinha era muito experiente e ganhei alguns quilos, pois o pasto era farto e muito bom.

A Diretoria estava expandindo seus negócios e para facilitar suas relações no campo político, ofereceu um almoço ao Governador, cujo prato predileto era “galinha gabidela”, também conhecida como “galinha ao molho pardo” . Até aí nada de excepcional, só que esse era, também, meu prato predileto.

Não comi mais nada. O único coadjuvante foi arroz. Separei outro prato, no qual ia colocando os ossos da penosa. Ao comer até não poder mais, respirei fundo e resolvi interromper o prazer.

Hoje sei que o acaso não existe, por isso te digo, que fui orientado a contemplar o prato reservado aos ossos. Fui invadido por aquela ossada, que num lampejo, numa centelha mostrava, sem cerimônias, minha animalidade.

Poderias estar exclamando: Cielomar, até aí morreu Neves, creio que a maioria sabe dessas coisas. Respondo-te: estudar, ler, ouvir sobre isso é muito diferente de vivenciar. Se aproveitarmos essas vivências e se elas forem mais freqüentes, penso que poderíamos nos transformar em sábios.

Respondi-lhe que havia se enganado. Minha exclamação era outra: Cielomar ganhei o dia!

Levantou-se do banco e convidou-me para almoçar.

Aceitei no ato. Só que não pude manifestar minha animalidade, pois o almoço foi no restaurante vegetariano ...

J Coelho
Enviado por J Coelho em 06/11/2011
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