CENAS DE BUENOS AIRES

Rolos de grossa e pérfida fumaça voluteando no ar, sendo levados pelo vento frio e fazendo estragos nos olfatos dos transeuntes, mãos jovens, adultas e velhas acendendo pontas de cigarros, aspirando com satisfação o veneno que deles exala. Cães passeando com seus donos pelas ruas e avenidas da cidade, tratados como se fossem mais importantes do que os outros semelhantes que passam na correria das horas, fazendo suas necessidades por onde andam, empesteando tudo com mal cheiro e excrementos quando não são pressurosamente apanhados por quem os conduz. Homens e mulheres idosos, sustentados por bengalas ou por braços amigos e familiares, claudicam em seus passos na direção das cafeterias, dos shoppings, das padarias, das confeitarias, enfim respirando talvez os poucos haustos de suas vidas enquanto podem, porém alegres, vívidos, sorridentes.

Uma velhinha bondosa aproximou-se do cachorro deitado no asfalto e passou a afagá-lo delicadamente no sábado sem trânsito no local porque uma equipe de filmagem da TV argentina tomava cenas pelas imediações. O cão, abandonado, se remexia renovado e feliz, as patas elevadas, o focinho tentando farejar aquelas mãos carinhosas e a língua buscando lamber os dedos que o mimavam. Lá adiante um casal gay desfilava de mãos dadas caminhando rumo ao movimento homossexual em plena ebulição na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada. Logo, mais outro, depois outro e tantos outros fazendo carinhos mútuos, sorridentes, todos indo para o mesmo lugar da concentração gay onde um balão pendurado no centro exibia frases da luta encetada pela turma por seus direitos.

O casal de idosos vinha cai-não-cai para o Mac Café, ele já quase todo encurvado pela idade, ela tremendo nas passadas, magrinha como uma folha de papel, pinicando no andar, ambos de mãos dadas como convém aos que se amam apesar do tempo, ele todo cuidadoso a protegê-la. A cafeteria estava absolutamente lotada, eles entraram ansiosos por um lugar onde pudessem sentar para tomar café e conversar, eu e minha esposa acabáramos de tomar o nosso e conversávamos, vimos os dois velhinhos chegando, sorrimos, nos levantamos, abri a porta para eles e ofereci nossos lugares, ele derreteu-se em agradecimentos, ela sorriu docemente e balbuciou "mui amable". Saímos conscientes de termos proporcionado uma grande alegria aos dois enamorados da terceira e melhor idade.

Vimos o bêbado vindo em nossa direção, o tosco cigarro prestes a cair dos lábios, pernas bambas, falando consigo mesmo ou quiçá com os fantasmas a atormentá-lo, balançando os braços como se discutisse ou brigasse contra o vento frio, torci para que não chegasse perto de nós, desviamos o olhar procurando parecer indiferentes, mas ele, decerto adivinhando minha antipatia por bêbados e cigarros, veio justamente acercar-se de nós e, achegando-se o mais perto possível, metendo as mãos nos bolsos a procurar sabe-se lá o quê, iniciou um blá-blá-blá interminável, o corpo balançando, o cigarro caindo e ele abaixando-se para pegá-lo, sem parar de falar, chamando minha atenção de qualquer maneira, porém meu olhar continuava indiferente e para o nada, eu agindo feito surdo e cego, ele insistindo, ficando bem em frente a mim a falar sem parar na linguagem dos ébrios e ainda mais em castelhano, e nada de conseguir de mim qualquer sinal, nem mesmo um piscar d'olhos, isso durou cerca de dois minutos, uma eternidade para mim, até que ele, balançando a cabeça como se achasse que ou sou doido, surdo ou cego, voltou a andar e se foi me chamando de tudo quanto é nome, acho.

Foi na pracinha do bairro Recoleta que os vi deitados lado a lado, depois abraçados ternamente, notei até um rápido e discreto beijo na boca, a seguir um deles colocou a perna sobre a do outro...namoravam como os casais héteros circunvizinhos, vários deles, olhos nos olhos, beijos ardentes, abraços sôfregos, sorrisos enternecidos, bem assim também eles, logo em seguida de mãos dadas, mas as pernas entrelaçadas, os aviões voando acima juntamente com os muitos pássaros que iam e vinham de árvore em árvore, os inúmeros automóveis correndo na pista adiante, parando nos sinais, as pessoas atravessando a rua movimentada, crianças brincando com seus pais, cachorros fazendo cocô nas proximidades ou correndo atrás das bolinhas jogadas por seus donos, eu e minha esposa nem achando nem desachando, pois quem sou eu para achar isso ou aquilo do comportamento de alguém, já que não sou juiz de nada, não passo de um humilde e pequeno poeta, e dos poetas não se pode esperar senão ternura?

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 06/11/2011
Reeditado em 06/11/2011
Código do texto: T3319820
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