O SUMIÇO DO PROCESSO

A tarde se arrastava lenta e morna naquele dia de agosto, embora a pasmaceira fosse uma constante naquele local, tudo transcorria normalmente na secção de determinado órgão público, que assim como em tantas outras o trabalho burocrático prosseguia sem pressa e rotineiramente, somente se destacava o barulho constante e irritante do carimbo que um estafeta utilizava para numerar as folhas de mais um processo.

Os demais funcionários continuavam suas tarefas com parcimônia, outros conversavam descontraidamente sobre amenidades, uma das secretárias, como sempre, estava ao telefone tagarelando sem parar seus assuntos particulares por mais de meia hora, sem qualquer cerimônia. O cafezinho, como em toda administração pública, estava à disposição de todos o que também era motivo para mais uma conversa sobre amenidades.

A voz destacada e dissonante do setor era daquela funcionária, antiga de casa, que todo santo dia chegava atrasada e narrava em alto e bom som para quem quisesse escutar a sua odisséia diária para chegar ao trabalho, pois tinha de pegar três ônibus, não sem antes fazer o almoço dos filhos, lavar a roupa, brigar com a vizinha, cuidar do marido, etc., etc., o certo é que levava mais tempo relatando aos brados suas dificuldades em chegar no horário do que o tempo efetivamente gasto de sua casa até o trabalho.

Havia também a funcionária “falando e andando”, ou seja, aquela que faz uma ligação no celular e sai caminhando pela sala falando alto sem parar, parando de carteira em carteira, de modo que todos são forçados a participar de sua conversa particular.

Os funcionários trabalham no setor de há muito tempo e já se conhecem por demais, sabendo das qualidades e dos pontos fracos uns dos outros, até as particularidades individuais não escapam das fofocas da famosa “rádio corredor’’ onde tudo se sabe e o que não se sabe é inventado e repetido tantas vezes até virar verdade.

Mas nesta tarde que começamos a falar, o gerente do setor saiu de seu cubículo, em que fica enfurnado sem fazer questão nenhuma de se comunicar com seus funcionários, e irrompeu pela sala atabalhoadamente procurando por um determinado processo, em que algum superior tinha urgência, e pergunta a um e outro pelo processo, mas ninguém sabia deste, pergunta ao subchefe pelo processo, visto que o chefe nunca estava na secção, e este coitado não sabia de nada, mas tinha que dar conta do dito processo.

Então procura-se por toda a sala, nas gavetas, nos armários e nada, alguém lembra que poderia estar com fulano que se encontrava viajando a serviço, ligam para o celular do citado e este também não sabe de nada, telefonam para o celular para outro funcionário que também estava viajando e não conseguem contato. A esta altura o caos está instalado na outrora tranqüila secção, todos vão procurar o indigitado processo, o gerente aos berros quer de qualquer maneira o processo:

- Esse processo tem que aparecer de qualquer jeito!!

Até os estagiários, que por sinal são sete, entram na dança da procura, viram e reviram gavetas, armários, etc., até que alguém lembra que o chefe de outro setor tinha falado no tal processo, rápido então um funcionário vai até a outra secção com a missão de trazer finalmente o processo, mas por azar era o tal chefe quem tinha enviado o famigerado processo.

Sem solução para o caso do sumiço do processo um diligente funcionário diz que talvez esteja no armário de beltrano que se encontra de férias. Com sua sagacidade costumeira o subchefe tem a brilhante idéia de arrombar o armário e chama o setor de serviços gerais, que com a brevidade contumaz do serviço público envia um preposto, este ao chegar ao setor pergunta pelo armário que tem de transportar, esclarecido o equivoco, depois de duas horas chega enfim o chaveiro, que não consegue abrir o armário e o gerente ordena que arrombe imediatamente, pois precisa do processo, feito o arrombamento nada se encontra no bendito armário, e a desesperada procura continua.

No final do expediente e como cabe a um gerente definir e resolver os problemas do setor, assim foi feito, este pediu o protocolo para verificar quem recebeu o processo no setor, a secretária trouxe o livro, identificado o dia da entrada do processo no setor, o gerente nervoso pergunta:

- De quem é essa assinatura aqui neste dia?

A secretária analisa e responde em voz baixa e temerosa:

- Essa assinatura é... de Alfredão.

O gerente então:

- Alfredão, essa assinatura é sua?

O pobre do Alfredão, funcionário com 32 anos de serviço público, talvez um dos únicos a chegar e sair no horário devido, cumpridor exemplar de seus deveres, e até mais, pois além do seu serviço consertava o aparelho de fax e a impressora e também recebia os documentos quando a secretária não estava, aliás, coisa rotineira, respondeu com segurança:

- A assinatura é minha sim senhor.

Pronto, enfim estava resolvida a questão, todos respiraram aliviados, principalmente o gerente, menos o Alfredão, não que o processo tenha sido encontrado, pelo contrário continuava sumido, pois Alfredão apenas recebeu o processo e como de costume colocou na mesa do chefe. Sim, mas agora já se tinha a quem responsabilizar pelo sumiço do processo!

Paulo Melo
Enviado por Paulo Melo em 04/11/2011
Código do texto: T3317077
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.